segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Valdenses modernos

Os adventistas do tempo da União Soviética deixaram grande exemplo de lealdade a Deus

O Pastor Wilmar Hirle nasceu em 1956 e é diretor associado de Publicações da Associação Geral da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Casado com Cleni Bruck da Silva Hirle, tem dois filhos: Walani, de 23 anos, e Gustavo, 19. Formado em Teologia em 1979, pelo IAE (hoje Unasp campus São Paulo), foi diretor de Publicações em várias regiões do Brasil e diretor do mesmo departamento na Divisão Sul-Americana (quatro anos e meio) e na Divisão Euro-Asiática (de 1999 a 2005).

Os valdenses foram seguidores de Pedro Valdo, morto em 1217. Desde o início, esse grupo de cristãos afirmava o direito de cada fiel ter a Palavra de Deus em sua própria língua. Muitos deram a vida para divulgar de forma secreta os ensinamentos das Escrituras. Mas os valdenses não foram os únicos porta-vozes da verdade. Mesmo em tempos mais recentes, houve pessoas que pagaram com a própria vida sua fidelidade a Deus e à Bíblia. Os adventistas do tempo da União Soviética são um exemplo.

Para traduzir, imprimir e espalhar livros dentro da chamada Cortina de Ferro, eram realizadas ações estratégicas dignas dos melhores livros e filmes de espionagem.

Em visita ao Brasil, o Pastor Wilmar Hirle, então recém-nomeado diretor associado de Publicações da Associação Geral, contou a Michelson Borges essas e outras histórias que conheceu e viveu no tempo em que foi diretor de Publicações da Divisão Euro-Asiática.

Descreva, em linhas gerais, a Divisão Euro-Asiática e a obra adventista naquela região.

A Divisão Euro-Asiática possui 300 milhões de habitantes e quase 150 mil adventistas. É composta por 12 países, sendo a Rússia o maior deles. A Ucrânia tem 48 milhões de habitantes e o maior número de adventistas na Divisão: 60 mil. Na Moldávia, país latino, temos uma igreja forte e conservadora, com muitos jovens, parecida com a do Brasil. Ela é considerada uma “incubadora de pastores”, já que sai de lá grande parte dos ministros que atuam na Divisão. Seis desses 12 países são muçulmanos e neles é mais difícil pregar o evangelho. Mesmo assim, a Igreja Adventista cresce ali também.

Nos primeiros dias após a queda do Comunismo, foram batizadas muitas pessoas. Mas hoje já não é essa a realidade. Mais de 40 por cento da população russa é atéia, 40 por cento pertencem à Igreja Ortodoxa e 20 por cento são uma mistura de outros credos, a maioria dos quais muçulmanos (só em Moscou, há 8 milhões de muçulmanos. Somando os muçulmanos da Divisão, há quase 100 milhões deles).

Quais são os maiores desafios evangelísticos da região?

A Igreja Ortodoxa é muito conservadora e prega que religião de russo é somente a Ortodoxa. O materialismo é outro problema. Há uma nova geração que está enriquecendo e não tem tempo para Deus. E os muçulmanos são o terceiro grande desafio. Naquela região está o país mais fechado do Comunismo, o Turcomenistão. Há seis anos, nossa igreja foi destruída lá e fomos proibidos de pregar e produzir livros. Então, começamos a mandar literatura pelo correio, em caixas, para o endereço de um adventista que se encarregava da distribuição. Mandamos milhares de livros. Infelizmente, depois de algum tempo, a polícia descobriu tudo e milhares de livros desapareceram. Mas ficamos felizes porque essa literatura deve ter ido parar nas mãos de alguém.

Atualmente, graças a Deus, a Igreja Adventista atua oficialmente nos 12 países da Divisão. Mesmo no Turcomenistão já temos autorização para trabalhar. O primeiro livro impresso naquele país, após a abertura, foi o Caminho a Cristo, de Ellen White.

Como a obra de Publicações enfrenta esses desafios?

O russo tem literatura “no sangue”. Todo russo sabe como escrever e publicar livros. Eles lêem no metrô, no ônibus, na escada rolante, e isso favorece nosso trabalho com publicações. Temos duas editoras oficiais na Divisão: uma na Rússia, que funciona há 13 anos, e outra na Ucrânia, que está crescendo muito. Além disso, temos um corpo editorial estabelecido em todos os outros países, produzindo literatura e terceirizando a impressão. Temos 3 mil colportores e publicações voltadas só para muçulmanos. Interessante: um dos livros mais aceitos pelos muçulmanos é o Patriarcas e Profetas, de Ellen White, que vende muito.

A barreira da língua também foi superada. Além do russo, cada país tem sua própria língua, e dentro da Rússia há várias repúblicas com seus idiomas locais.

Um fato interessante ocorreu numa república da Sibéria. O irmão do presidente é tradutor e decidiu traduzir a Bíblia para a língua da república. Um pastor adventista o visitou e perguntou se ele não poderia traduzir o livro Caminho a Cristo, e ele traduziu. Ano que vem será o aniversário de 250 anos dessa república e eles nos pediram para preparar uma edição especial do Caminho a Cristo para essa comemoração.

Fale um pouco sobre seu contato com os muçulmanos.

Certa noite, eu estava pregando na capital do Daguistão e, após o culto, uma moça que havia vindo pela primeira vez à igreja me disse: “Vá visitar minha casa.” Quando cheguei lá, vi que ela e a mãe, que é arquiteta, haviam me preparado um banquete pelo simples fato de eu ter aceito o convite. Após o jantar, a mãe da moça me deu um jogo de cristal caríssimo. Eu perguntei o porquê do presente, e ela me disse: “Quando alguém entra em minha casa, torna-se meu amigo e nunca sai sem levar algum presente.”

Quando estive no Azerbaijão, de início me disseram que eu não podia falar de Jesus. A semana de evangelismo não estava indo bem e resolvi mudar o foco na terça-feira, falando da volta de Cristo, do batismo e outros temas “proibidos”. Então, o povo começou a aparecer e lotou o auditório. No fim, batizamos oito pessoas e cerca de 50 muçulmanos aceitaram a Jesus no apelo final.

Nas capitais há mais abertura para a pregação cristã. De qualquer forma, o mais importante, ao lidar com os muçulmanos, é desenvolver a amizade sincera. E nesse ponto, o brasileiro leva vantagem, com seu estilo aberto e descontraído.

Como era a evangelização adventista nos tempos da “Cortina de Ferro”?

Era muito difícil. Muitos irmãos foram presos e enviados para a Sibéria, principalmente pelo fato de imprimir e espalhar livros. Mas havia o chamado “programa subterrâneo”, que consistia em produzir literatura secretamente. Funcionava assim: um adventista de outro país levava as lições, meditações e livros para um líder adventista na ex-União Soviética, num encontro em restaurantes, por exemplo. Lá, “esquecia” a maleta com literatura e ia embora. Os impressos eram então traduzidos, copiados e enviados para pessoas-chave em cada país, a fim de que elas reproduzissem a literatura. Esse trabalho era feito debaixo de mesas cobertas com cobertores, para abafar o ruído das máquinas de escrever. Eram usadas de dez a doze folhas de papel com papel carbono entre elas, e as teclas da máquina eram apertadas com força, a fim de se produzir várias cópias da mesma página. Depois, eles furavam as folhas, costuravam, colavam à mão e distribuíam os livros para os interessados e para os irmãos da igreja.

Muitos desses “valdenses modernos” trabalhavam como fotógrafos, e ao visitar os lares, percebendo interesse, deixavam a literatura. Os taxistas adventistas faziam, e ainda fazem, o mesmo nos países muçulmanos: ao conversar com os clientes, se percebem interesse, deixam algum impresso.

Em 1999, a editora adventista russa em Moscou inaugurou uma nova rotativa e convidou os antigos copiadores de literatura. Foi uma cena que jamais vou esquecer. Lá estavam aqueles velhinhos, com suas antigas máquinas de datilografar, em volta da moderna impressora. Foi feita uma oração e pediram que um dos idosos apertasse o botão para iniciar a impressão. Foi impossível não chorar.

Durante o tempo do Comunismo, quando muitos adventistas foram enviados para as prisões da Sibéria, mesmo com todas essas dificuldades, houve intensa atividade do Ministério de Publicações.

Como avalia seu tempo de trabalho na Divisão Euro-Asiática?

A barreira da língua foi um grande desafio. Também não foi fácil deixar os filhos longe, no Brasil. Mas tivemos o privilégio de distribuir mais de 8 milhões de livros e publicar literatura em cada um dos 12 países da Divisão, o que era um sonho. E Deus nos permitiu ver esse sonho realizado. Hoje, não se consegue importar livros da Rússia para esses países, devido aos impostos e à cultura. Por isso, é uma bênção poder imprimi-los em cada país. Conseguimos, também, implantar uma biblioteca em cada igreja, mesmo na Sibéria. Os membros lêem, emprestam e muitos se convertem pela leitura. Portanto, foi um privilégio trabalhar naquela Divisão.

Experiências marcantes...

Uma foi a semana de reavivamento e colheita na capital do Casaquistão. Entre os que haviam atendido ao apelo estava uma menina de 17 anos, que dizia: “Pastor eu quero ser cristã adventista, mas meu pai morreu e meus parentes são todos contra. Quero ser batizada, o que faço? Devo ou não ser batizada?” Eu disse que ela deveria decidir e que o Espírito Santo deveria dar a resposta. Oramos e, na noite seguinte, ela voltou feliz, dizendo que tinha duas ótima notícias: sua mãe, pela primeira vez, havia deixado de ser contra sua decisão e havia ido à igreja naquela noite. Cumprimentei aquela senhora e nos tornamos amigos. A outra notícia a moça me deu em particular, perguntando: “O senhor poderia me batizar?” Tive o privilégio de batizá-la no sábado seguinte.

Outra história aconteceu nas montanhas ao sul da Sibéria. Uma colportora (vendedora de literatura religiosa, educacional e de saúde) visitou uma senhora de 78 anos de idade. Era o dia do aniversário da senhora e ela havia pedido um presente a Deus. Quando as colportoras entraram na casa dela e começaram a apresentar os livros, ela disse que, antes, queria apresentar algo a elas. E começou a pregar sobre o sábado. As moças perguntaram como ela havia compreendido isso e foram informadas de que 45 anos antes aquela senhora havia sido batista mas, estudando a Bíblia, acabou descobrindo o mandamento do sábado e começou a guardá-lo. Foi afastada da igreja, mas continuou observando o sábado sozinha, por todos aqueles anos. Quando a colportora disse que também guardava o sétimo dia, aquela mulher chorou de emoção. Quando a visitei, ela quis saber quantos guardadores do sábado há no mundo e eu disse que são mais de 15 milhões de adventistas. Foi uma alegria só. Hoje, há um pequeno grupo que se reúne na casa dela.

No norte da Sibéria há uma igreja que se reúne num vagão de trem. Fui o primeiro adventista estrangeiro a visitar a região. Você entende o que é se reunir num vagão de metal com temperaturas de 30, 40 graus negativos? Quando eu lhes disse que estava indo para a Associação Geral (foi lá que soube do chamado), prometi que pediria ajuda para eles. Perguntei: De que vocês mais precisam aqui? Eles apontaram para o vagão e disseram: “Pastor, igreja nós já temos; o que precisamos é de uma escola. Temos idosos, casados e crianças em nossa igreja, mas quase não temos jovens. Os jovens vão para as escolas que ainda seguem a filosofia comunista e acabam saindo da igreja. Queremos que nossos jovens fiquem na igreja.”

Prometi, então, fazer uma campanha em favor daqueles irmãos e desenvolvemos um site para isso (http://projetosiberia.bravehost.com).

Como se sentiu ao receber o chamado para a Associação Geral?

De início, fiquei em estado de choque, pois é uma missão muito grande. “Será que estou preparado?”, pensei. Mas é animador pensar que, de alguma forma, poderei ajudar muitos países que ainda não têm literatura adventista na própria língua. De certa forma, tenho que repetir a experiência da Divisão Euro-Asiática, mas agora em âmbito mundial. E tenho certeza de que poderei contar com o apoio e as orações de meus irmãos brasileiros.


Pastor Wilmar Hirle e Michelson Borges com um dos livros produzidos à mão por adventistas, no tempo da "cortina de ferro"