quarta-feira, dezembro 31, 2008

Sonho missionário

Dioi Cruz nasceu em São Paulo, no dia 30 de maio de 1969. Sua base acadêmica foi construída em instituições adventistas: estudou Ciências Exatas e Biológicas no Iasp (Unasp, campus Hortolândia); iniciou Teologia no Unasp, campus São Paulo; continuou o curso (2º ano) na Universidad Adventista Del Plata, Argentina; e o concluiu no Helderberg College, África do Sul, tendo se formado em 1994. Chegou a estudar Sociologia na University of South África (curso inacabado) e atualmente faz mestrado em Liderança na Universidade de Santo Amaro (Unisa). Trabalhou como colportor na Espanha para conseguir uma bolsa a fim de estudar no Newbold College, Inglaterra. Sem sucesso, foi trabalhar na Itália e, finalmente, decidiu estudar no Helderberg College, que é uma extensão da Andrews University na África do Sul. Lá conheceu a esposa e “companheira de aventuras”, a argentina Silvia Zapata. Eles têm dois filhos: Giuliana, de 10 anos, e Guido, de 7.

O pastor Dioi iniciou seu ministério em 1995, tendo servido como pastor assistente na Igreja Central de Brasília, como distrital da Asa Norte e, em seguida, de Sobradinho, enquanto a esposa trabalhava na Divisão Sul-Americana. Em 1999, eles receberam um chamado para o Níger, na África, onde ele serviu como presidente da Missão e diretor da Adra. Dioi também foi presidente interino da Missão do Burkina Faso, presidente da Missão do Chade (para onde nem chegou a ir, devido às convulsões sociais) e, desde 2006, serve na Missão da Guiné Conakry, no oeste da África. Ele coordena as atividades da Missão, da Adra e de um distrito pastoral. Silvia trabalha como secretária e diretora de departamentos.

Em recente passagem pelo Brasil, concedeu esta entrevista a Michelson Borges:

Por que você decidiu se tornar missionário?

Servir a Deus em um contexto transcultural foi meu sonho de criança. Por meio dos cultos em família, das atividades na igreja e principalmente das emocionantes histórias de missionários, Deus estava me preparando para servi-Lo em alguns dos países mais difíceis da África. Ao ouvir aquelas lindas histórias antes de ir dormir, que faziam rir e chorar, eu era tocado pelo “ide” de Jesus e, com voz embargada, dizia aos meus pais que um dia seria missionário.

Meu pai era pastor, gostava de viajar e moramos em algumas regiões da rica e diversificada cultura brasileira. Essas experiências alimentavam meu sonho. Na adolescência, li de David Livinsgtone a Leo Halliwell e outros missionários que me inspiraram. Ao ler essas histórias, meu coração ardia de vontade de servir a Deus em algum lugar não alcançado, aprender novas línguas e desvendar a diversidade cultural de cada região. Assim, com sacrifício e perseverança, decidi estudar Teologia e Sociologia em diferentes lugares, descobrindo com empolgação como Deus conduz Seu povo em diferentes contextos culturais.

Como é o seu dia-a-dia?

Não é simples, especialmente na Guiné Conakry, onde vivemos há dois anos. Não temos eletricidade, nem água corrente, e é preciso encontrar soluções práticas. O gás de cozinha é caro e algumas vezes tivemos que usar o fogãozinho a brasa. A insegurança é constante, o governo é instável e sempre há greves violentas nas quais muitas pessoas morrem. Numa crise grave em 2007, recebemos autorização para ser evacuados, mas já não havia aviões. Sair por terra seria muito arriscado e tivemos que ficar um mês prisioneiros em nossa própria casa. Foi declarado estado de sítio e ninguém podia sair às ruas.

Diariamente enfrentamos muitos problemas práticos e é importante conhecer um pouco de enfermagem, nutrição, mecânica, informática, marcenaria, eletricidade, construção, etc. Em outras palavras, é preciso saber dar um “jeitinho”.

Além desse problema na Guiné Conakry, que outras situações difíceis você já enfrentou como missionário?

Quando chegamos ao Níger, há nove anos, ao sair do avião tínhamos a impressão de estar entrando em uma sauna seca. Deu vontade de dar meia-volta e ficar dentro do avião. Ao chegarmos à casa pastoral, parecia que tudo estava pegando fogo. O termômetro marcava 48 graus Celsius à sombra. O ar que respirávamos queimava e quando faltava eletricidade e não podíamos usar o ventilador ou o ar condicionado, tínhamos que dormir sobre uma toalha molhada tendo outra para nos cobrir, para refrescar um pouco.

Aprendemos a comer de maneira simples, tentando sempre balancear a alimentação com o que estava disponível. Muitas vezes, não podíamos encontrar uma única banana em Niamey, a capital, e tínhamos que esperar chegar da Costa do Marfim. Internet ainda era uma comodidade rara e nos sentíamos muito sozinhos. Apesar disso, o Senhor sempre nos confortou por meio de novos amigos, de irmãs e irmãos africanos que não mediram esforços para nos entender e nos aceitar.

No começo da Guerra no Iraque, o governo nos convidou para participar em uma comissão de entendimento entre as religiões reveladas, o Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo. Várias autoridades do governo estavam presentes e a reunião foi realizada na Grande Mesquita em Niamey, onde estávamos todos sentados no chão, sem sapatos, segundo o costume. O líder da Associação Muçulmana Nacional começou a falar em Árabe e após quase duas horas de introdução, começamos a nos apresentar. O pastor local estava comigo e após as apresentações, todos nos olhavam de maneira diferente, até que alguém se levantou dizendo que não éramos dignos de estar ali porque éramos uma seita perigosa e que havíamos blasfemado no passado contra o Islamismo.

Olhei para meu colega Nigeriano e lhe perguntei cochichando se deveríamos nos defender de tamanha acusação. Ele me respondeu discretamente que não deveríamos falar nada, mas permanecer sentados e estáticos. Percebi que a situação era muito séria. Nossa única chance era que alguém se levantasse para nos defender. Depois de alguns minutos de silêncio, um líder muçulmano se levantou, nos defendeu e elogiou o trabalho que fazemos por meio das três escolas da Adra, dos programas de saúde e da distribuição de alimentos. A representante de uma associação de mulheres muçulmanas também elogiou o trabalho que a Igreja Adventista faz e a educação que seus próprios filhos receberam. Vários outros se levantaram e nos defenderam, entre eles um pastor batista que afirmou que não éramos uma seita e que seguimos os princípios bíblicos. Confesso que tive medo de ser lapidado e até morto, como sempre aconteceu nos conflitos entre cristãos e muçulmanos no país ao lado, a Nigéria. Ao sair, deixei com cada pessoa um livro da Associação Internacional de Liberdade Religiosa (Irla) e nunca mais tivemos problemas de preconceito com ninguém. Além disso, o governo nos concedeu uma autorização de atividades para períodos renováveis de cinco anos, em vez um ano.

Fale sobre a história do “vento do Espírito Santo”.

Por meio do ministério de apoio Gospel Outreach, decidimos implantar uma igreja em Maradi, a segunda maior cidade do Níger que não tinha nenhuma presença adventista. Fizemos uma reunião de planejamento e escolhemos os métodos que seriam usados. Começaríamos com o futebol, o Clube de Desbravadores e um curso de fabricação de sabão.

Assim, antes de cada aula de fabricação de sabão, o obreiro bíblico lia alguns textos do Alcorão e da Bíblia e dava algumas explicações antes de orar a Al-fatiah, uma linda oração muçulmana. Certo dia, vários homens barbudos, conhecidos por serem extremistas, vieram com o presidente de uma associação temida. Nosso obreiro evitou tocar em assunto religioso e quis começar a aula rapidamente porque temia ser agredido.

Um deles disse: “Queremos ouvir a pregação!” O obreiro, em oração e com mãos trêmulas, tomou o Alcorão com todo respeito para ler um texto, quando de repente um vento começou do nada e jogou todos os folhetos de lições bíblicas sobre as pessoas. Quando o obreiro já estava tentando sair discretamente pelas portas do fundo, as pessoas começaram a pedir insistentemente explicações do conteúdo dos folhetos. Temeroso, ele começou a explicar e se surpreendeu ao perceber que eles não tinham má intenção. Nos dois meses seguintes, aqueles barbudos assistiram todas as aulas de fabricação de sabão e aos estudos bíblicos. Formaram uma cooperativa de sabão e estavam muito felizes com tudo o que aprenderam sobre os cristãos adventistas.

Quando fui à cerimônia de entrega dos certificados de conclusão, percebi que a placa que havíamos feito para identificar o grupo adventista havia sido alterada. Não estava mais escrito “Eglise Adventiste du Septième Jour”. Alguém havia alterado para “Les Adventistes du Septième Jour”. O obreiro bíblico explicou-me que havia sido uma sugestão do presidente da associação extremista e que com essa mudança na placa todos estavam vindo às reuniões da Escola Sabatina e cultos sem preconceito algum. Quando perguntei ao presidente da associação por que estavam freqüentando o grupo adventista, ele respondeu: “Vocês são bons cristãos e pela primeira vez ouvi alguém nos falar de Issa (Jesus Cristo) como Messias usando o nosso próprio livro.”

Esse “vento do Espírito Santo” deu início a um lindo grupo de adventistas naquela cidade.

Você encontrou uma vila que tinha o sábado como dia de descanso. Fale sobre isso.

Uma história recente e emocionante foi a conversão em massa da população de uma aldeia dos Kissis chamada Powa, que fica na floresta próxima da fronteira com Serra Leoa, onde morreram muitas pessoas em guerrilhas violentas. Kissi quer dizer “salvador” ou “protetor”, porque no passado os melhores guerreiros eram Kissi. Um jovem Kissi chamado Michel saiu de sua aldeia para estudar em Gueckedou, a cidade mais próxima, onde através de um folheto bíblico conheceu a mensagem adventista e foi batizado. Voltou à Aldeia e depois de muita insistência convenceu os pais a irem à Escola Adventista de Gueckedou assistir aos cultos. Eles gostaram e persuadiram o chefe da aldeia que também decidiu estudar a Bíblia. Nessa região, tradicionalmente as pessoas não plantam nem colhem no sábado porque é o “dia do descanso da terra”. Apesar de serem todos animistas e feiticeiros, o chefe gostou muito do que aprendeu sobre o sábado e disse que ele seria batizado, mas que todo o povo da aldeia deveria também ser batizado. Quando estive lá, falei do amor de Jesus e do Seu poder para nos libertar das forças do maligno e de todas as feitiçarias.

Despedimo-nos ao som do coral das crianças cantando musicas feitas na hora sobre a pregação que haviam escutado. Marcamos o grande batismo para o mês de maio deste ano e foi uma festa! Graças a doações de irmãos da igreja no Brasil, a capela estava pronta para ser inaugurada. Considerando que os braços de nossa pregação são o Ministério da Saúde e da Educação, construímos um poço e iniciamos uma escola de alfabetização. Hoje, três aldeias próximas a Powa decidiram também aceitar Jesus Cristo como seu protetor e se preparam para um grande batismo de mais de 150 pessoas, quando será inaugurada a sua capela, o poço e a escola de alfabetização.

Como construir pontes e aproveitar aspectos culturais de cada povo a fim de levá-lo a Jesus?

Precisamos entender os princípios bíblicos mostrados na vida dos grandes missionários de Deus como Abraão, Paulo, João, Pedro e muitos outros. Todos esses homens e mulheres de Deus, devido às circunstâncias naturais ou segundo o plano de Deus, aprenderam a não ser rígidos e monoculturais. Eles foram eficientes em sua missão porque souberam honrar e amar as pessoas respeitando sua cultura, tradições, costumes e língua. Decidiram ser flexíveis, tolerantes e amáveis sem, contudo, desprezar as regras, normas e princípios eternos de Deus. O Espírito Santo outorga esses dons principalmente às pessoas que têm paixão pelo bem-estar do próximo e por sua salvação.

É possível alcançar esse equilíbrio quando imergimos na cultura onde atuamos e olhamos para as pessoas com os olhos de Jesus. Por isso, no maravilhoso plano da redenção, Cristo Se encarnou em nossa cultura pecadora, porém, sem cometer pecado, para que o Divino pudesse Se comunicar com o humano.

Até que ponto podemos ir nessa “abertura cultural” sem comprometer princípios?

Alguns argumentam que o pecado é relativo e que não existem absolutos morais porque as definições culturais do pecado mudam. Se não distinguirmos as normas bíblicas das normas de nossa cultura, não poderemos afirmar a natureza absoluta das definições dos princípios bíblicos. Como cristãos, pregamos que existem padrões de justiça dados por Deus sob os quais serão julgados os seres humanos de todas as culturas.

É necessário que façamos distinção entre as “coisas celestiais” e as “coisas terrenas”, e entre “graça salvadora” e “graça comum”. Em todo o Seu ministério, Cristo tentou nos mostrar a posição correta dessa linha divisória rompendo com algumas tradições e lembrando-nos dos princípios. Alguns cristãos confusos pretendem ser salvos pela “graça comum” e ignoram a “graça salvadora” ou transformadora de Cristo.

A linha divisória entre as tradições ou costumes temporais e os princípios eternos de Deus é, às vezes, erroneamente definida segundo a cultura em que vivemos e a nossa experiência pessoal com Deus. Nossos valores e costumes influenciam o entendimento da justiça e da misericórdia de Deus e a percepção do que Ele espera de nós e do que esperamos dEle. Existem cristãos que de maneira rígida “santificam” tradições e costumes e existem cristãos que de maneira profana depreciam as normas, regras e princípios eternos de Deus. Precisamos dar coerência a nossa fé seguindo nosso exemplo máximo, Jesus Cristo.

Pode dar algum exemplo prático disso?

Quando trabalhávamos no Níger, percebemos que a população não ocidentalizada não usa aliança de casamento. A mulher usa brincos que foram dados por seu marido como símbolo de fidelidade. Se uma mulher não usa brincos é porque é solteira, viúva ou divorciada. Que conselho dar às irmãs adventistas cujo marido ainda não é convertido e se sente ofendido se a esposa não usa os brincos do casamento? Com base no conselho bíblico, essas irmãs não deveriam abandonar os maridos não crentes, mas serem fieis e convertê-los (1Co 7:13). Sabendo que o uso de brincos nesse contexto não é um ato de vaidade, mas sim de fidelidade e respeito ao casamento, essas irmãs usaram brincos até que seus maridos se convertessem. E por respeito aos membros, essas irmãs retiravam os brincos ao irem à igreja.

O cristianismo “beatificou” muitos costumes pagãos como, por exemplo, o uso da aliança de casamento para ser um símbolo da fidelidade no casamento. Alguns desses costumes são aceitos pela maioria dos cristãos hoje. São tradições religiosas que devemos subjugar aos princípios bíblicos.

Sobre os cristãos que têm costumes não respaldados por princípios bíblicos, o missionário Paulo disse uma vez: “Mas que importa? Contanto que Cristo seja anunciado de toda a maneira, ou com fingimento ou em verdade, nisto me regozijo e me regozijarei ainda” (Fp 1:18). Por que não anunciar Jesus sendo cristãos autênticos? Com certeza seríamos mais eficientes.

Como adventistas do sétimo dia, nossa posição se aproxima mais de Cristo como transformador da cultura, porque a nossa mensagem é peculiar para este momento histórico em que os valores na sociedade estão quase todos invertidos.

Como pregar especificamente para um muçulmano?

A melhor maneira de apresentar Jesus como Salvador a um muçulmano é por meio da maneira como vivemos. O maior desejo do muçulmano sincero é saber que Deus o ama e pode perdoá-lo, mas antes precisa ver isso em nossa vida. Ao observá-lo para ver se você é um crente fiel, ele vai primeiro analisar se os que estão mais próximos de você são também fiéis. Por isso, antes de começar a trabalhar com um muçulmano, é muito importante que sua família e amigos amem ao Senhor e vivam em harmonia com a vontade dEle. O estilo “faça o que Deus diz, mas não siga o meu exemplo” não funciona. Precisamos falar numa linguagem adaptada. Isso inclui histórias, tradições e poemas que apresentem a verdade dentro da cultura islâmica. É muito importante conhecer o Alcorão e as tradições muçulmanas.

O que envolve o preparo para ser missionário? Que aptidões são úteis?

Ter muito tato e nenhum olfato! Se você não gosta de ovelhas, não seja pastor. É preciso gostar de gente e não ser preconceituoso. Conseguir ver o valor infinito que cada pessoa tem para Deus. Estar disposto a sofrer. Ter hábitos saudáveis que promovam a saúde física e emocional. Respeitar as tradições locais. Gostar de aprender novas línguas e costumes. Muita oração. E, sobretudo, buscar inspiração na vida de Cristo e na dos grandes missionários apostólicos e contemporâneos.

O que deve fazer quem deseja ser missionário?

Deve colocar o projeto nas mãos de Deus, entregar o currículo ao secretário da Associação ou União e aguardar a oportunidade. Existem muitos lugares onde atuar como missionário. Para começar, é importante estar envolvido em todas as atividades da igreja local, ler sobre a vida dos grandes missionários, sonhar alto e aprender o inglês, se desejar servir fora do Brasil. O site https://interdivisionservices.gc.adventist.org oferece várias oportunidades, como também o programa de Missionários Voluntários http://www.adventistvolunteers.org, coordenado pela Marly Timm (marly.timm@dsa.org.br) da Divisão Sul-Americana.

Quais as vantagens dos missionários brasileiros?

Vivemos no país dos mamelucos, mulatos e cafuzos. Nossa cultura é rica, abrangente e qualquer estrangeiro se sente bem aqui. No Brasil, existe a maior comunidade japonesa fora do Japão, vivem mais libaneses aqui do que no Líbano. Em toda a África, apenas na Nigéria a população negra é maior do que a do Brasil. Existem outros países que são mais multiculturais e multilingüísticos que o Brasil, mas não se vê tanta miscigenação racial. Por mais marginalizado que seja, o estrangeiro é recebido com carinho pelos brasileiros.

Essa tolerância cultural nos ajuda a sofrer menos com o choque cultural ao ir para o exterior. E caso haja algum problema de desentendimento, é só falar do Pelé, dos Ronaldinhos, de Samba e Bossa Nova, que todas as barreiras desaparecem.


Batismo no rio Niger