quarta-feira, agosto 18, 2010

Ele buscou a carreira e encontrou muito mais

Emanuel Lusevikueno Pedro Dundão tem 23 anos, nasceu em Angola, na província de Luanda, e adotou o pseudônimo Kiama. Estudou Filosofia no Seminário Maior de Cristo Rei – Huambo, mas não teve o privilégio de terminar o curso por “questões vocacionais”. É graduando em Direito e Administração de Empresas no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp, campus Engenheiro Coelho) e membro da Academia Nogueirense de Letras (ANL). Kiama tem participações em várias antologias poéticas pela Editora In House: Um Mundo Melhor (2008), As Nossas Mulheres 3 (2009), Para a Minha Mãe 2 (2009) e Introspecção (2010). Trabalhou como auxiliar administrativo na Brigada Especial de Limpeza da Casa Militar de Angola (2006). Desempenhando serviço voluntário, foi secretário executivo (2008/2009) e tesoureiro da Associação IDS-Estudantes, Projeto de Formação de Quadros Angolanos. Nesta entrevista concedida ao jornalista Michelson Borges, Kiama, que lança seu primeiro livro (Ecos d’Angola) na 21ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, fala um pouco de sua experiência no Brasil:

Fale sobre como surgiu a oportunidade de estudar no Unasp.

Fui seminarista da Congregação do Espírito Santo (CSSP) durante seis anos. No fim de 2005, solicitei ao reitor do Seminário que me concedesse um tempo para refletir sobre minha real vocação, solicitação essa que foi atendida. Nesse período, abandonei a província do Huambo e parti para Luanda, capital de Angola, onde comecei a trabalhar e a estudar Direito na Universidade Católica de Angola (UCAN), de modo a não ficar na ociosidade. Posso dizer que a minha vocação sempre foi alternativa, quer dizer, ser sacerdote ou homem da Lei, formado no exterior do país. Aproveitando o momento de reflexão, fiz solicitação de bolsa de estudo a várias instituições angolanas e, dessa forma, fui contemplado com uma bolsa de estudo no Unasp, por meio da Fundação Eduardo dos Santos (FESA), que muito tem contribuído para a formação intelectual e cultural de jovens angolanos. Portanto, é dessa forma que tive a oportunidade de vir estudar no Unasp.

Você já conhecia o Brasil? O que está achando da experiência de morar aqui?

Não conhecia o Brasil até julho de 2006, período em que vinha fazer o vestibular do Unasp para cursar Direito. Morar no Brasil, posso assim dizer, está sendo uma experiência ímpar, pois, apesar de haver algumas coisas em comum com meu país, ainda há aspectos que só são do Brasil e isso, necessariamente, vai me conceder uma forma distinta de enxergar o mundo que não sei se a assimilaria caso não vivesse aqui por algum tempo. Gosto muito do Brasil, que é um país aberto para diálogos e inovações, e do seu povo, que, por sinal, é muito amigo e acolhedor.

O que achava da Igreja Adventista antes de estudar no Unasp? Essa concepção mudou?

É difícil dizer assertivamente o que eu achava sobre a Igreja Adventista como instituição, antes de estudar no Unasp, porque nunca havia tido contato com essa denominação religiosa. Porém, permita-me dizer que tive dois colegas adventistas, os quais, de alguma forma, faziam-me tirar ilações sobre a Igreja Adventista. Um deles só dizia que não se deve fazer avaliação alguma no dia de sábado e o outro, igualmente, alegava que não podia comer carne suína. Nenhum dos dois dava explicações convincentes e plausíveis sobre os reais motivos de tais posturas. Assim, parecia que pertenciam mais a uma denominação de proibições do que de princípios. Entendo ser fundamental, aqui, saber a distinção entre proibição (posturas negativas que são adotadas, independentemente de serem benéficas ou maléficas ao homem, de forma particular, e à sociedade, de forma geral) e princípios (estilo de vida que deve ser estudado, vivido e propagado, pelo que faz bem ao homem, de forma particular, e à sociedade, de forma geral).

Chegando ao Unasp e estudando um pouco mais a Bíblia, as crenças e convicções adventistas – as quais, por sinal, são bíblicas –, passei a entender melhor a Igreja Adventista. Vejo, portanto, que se trata de uma denominação que apregoa a mensagem bíblica, saudável e alegre, razão por que não deve ser propagada em forma de proibições, mas sim em forma de princípios.

Você diz que agora vive de acordo com os princípios adventistas. O que motivou essa decisão?

Desde menino, meus pais me ensinaram a obedecer rigidamente às suas regras que me davam prazer cumprir, pois entendia que eles só queriam o meu bem e eu acreditava que, obedecendo-as, seria benéfico para mim, já que todos os pais almejam o bem para os filhos. Do que estudei e tenho estudado sobre a Igreja Adventista, tenho tido a convicção de que sua teologia é muito lógica e racional. Demonstra que Deus nos ama e que todos os princípios que estipula para os seguirmos têm como fim nosso próprio bem, melhorando, assim, nosso relacionamento com Ele. Por isso, entendo serem tais princípios verdadeiros ou estarem muito próximos da verdade. Sendo assim, não seria ético nem cristão ter algo como verdadeiro e não vivê-lo ou, ao menos, esforçar-se para segui-lo.

Respondendo sua pergunta, pode-se mesmo construir o seguinte raciocínio: todo aquele que deseja ter bom relacionamento com Deus deve obedecer aos princípios bíblicos. Ora, os princípios da Igreja Adventista são bíblicos. Então, todo aquele que deseja ter bom relacionamento com Deus pode (ou deve) viver como adventista. É isso que me motivou a tomar essa decisão.

Como ex-seminarista, quais são as indagações histórico-bíblicas que você entende que todo seminarista deveria fazer?

Há várias indagações histórico-bíblicas que considero interessantes e que, penso, devem ser estudadas, não só por seminaristas, mas também por todo cristão que almeja entender um pouco mais sobre os desígnios de Deus. Entretanto, em termos de prioridade, penso que se deva indagar o seguinte: (1) O dilúvio realmente ocorreu? Se não, o que nos mostra a Geologia sobre a provável existência de tal acontecimento? (2) Quais são as razões históricas e implicações proféticas do fato de algumas Bíblias terem mais livros do que em outras? (3) Quais são as razões históricas e implicações proféticas da mudança de adoração a Deus do sábado para o domingo? (4) Os Dez Mandamentos foram abolidos? Se sim, quantos tipos de leis se aborda na Bíblia e quais leis foram abolidas? (5) Como entender melhor a Lei e a Graça? Uma substituiu a outra? (6) Aonde o ser humano vai após a morte e qual é o embasamento bíblico para tal resposta? (7) Haverá sinais que antecederão o Segundo Advento de Cristo? Se sim, quais são esses sinais? (8) O que as profecias de Daniel e Apocalipse nos revelam sobre isso? Entendo serem temas que merecem muito estudo e, inclusive, estudo comparado para se formar raciocínio correto e coeso.

Quais os seus planos para depois da formatura?

Tal como o general romano Júlio Cesar, discursando sobre uma de suas grandes vitórias, pretendo, primeiro, retornar a Angola e dizer: “Vim, vi, venci” (Veni, vidi, vici). Será uma forma de demonstrar que cumpri as ordens da instituição que me concedeu a bolsa de estudo. Seguidamente, vou agradecer aos meus familiares e a todos os que me apoiaram direta ou indiretamente para que conquistasse a graduação e, depois, vou me doar para participar da reconstrução do país que viveu um período de vinte e sete anos de guerra civil. Entretanto, se houver a possibilidade de fazer alguma pós-graduação, não declinarei a oportunidade, já que a assimilação de saber é uma mais-valia para a edificação de coisas nobres. E como fazer parte da edificação de uma nova Angola é coisa nobre, quero aproveitar a eventual oportunidade.

Você vai lançar um livro na Bienal do Livro deste ano (2010). De que trata a obra?

O livro que lançarei na 21ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no dia 22 de agosto, às 13h, intitula-se Ecos d'Angola. Trata-se de uma compilação de 63 poesias, as quais aparecem subdividas em sete capítulos ou temas. Em poucas palavras, Ecos d’Angola é uma obra de poesia que traz à tona alguns marcos significativos de Angola do passado, de Angola do presente e da nova Angola que já começou a ser reerguida: uma Angola de paz, de solidariedade e de unidade nacional. É por isso que decidi doar 50% do lucro dessa obra a um orfanato de crianças angolanas, pois também acredito em uma nova Angola.

Vê-se na capa do livro a bandeira de Angola e do Brasil, e na orelha da contracapa uma mulher vestida com traje típico angolano, mas com óculos modernos. O que isso quer dizer?

De fato, na capa do Ecos d’Angola vê-se ambas as bandeiras. É uma tentativa de demonstrar todo o amor e carinho que eu, em particular, e Angola, em geral, nutrimos pelo Brasil. Este país é um grande amigo e irmão de Angola, irmandade essa que não se esgota simplesmente pelo fato de terem a mesma língua oficial: a língua portuguesa. Mas também porque o Brasil foi o primeiro país do mundo a reconhecer a emancipação política de Angola. Esse gesto tem grande significado para um país que foi vítima de muitos anos de colonização. Ainda para solidificar essa amizade entre os dois países, pode-se falar que tem havido muito acordo e intercâmbio nas áreas da economia, saúde, cultura e educação. E se não houvesse intercâmbio na área da educação, talvez eu não estivesse hoje aqui me preparando para lançar o Ecos d’Angola. Portanto, penso que funciona como um imperativo ético demonstrar essa gratidão.

Quanto à ilustração da mulher, na orelha da contracapa, vestida de bessangana, traje típico das mamãs de Luanda, e com óculos modernos, é para demonstrar que, com o fenômeno da globalização, a cultura de Angola, como de vários países, tem perdido paulatinamente sua originalidade. É por isso que Ecos d’Angola apela aos angolanos, num linguajar poético, a não se deixarem embriagar pela aculturação por destruição, de modo a perderem suas raízes, mas sim pela aculturação por reintegração, sem ferir os hábitos e costumes da angolanidade.

Por que decidiu destinar parte do lucro das vendas do livro para ajudar crianças órfãs?

Angola é um país que conquistou sua emancipação política em 11 de novembro de 1975, após prolongado período de colonização portuguesa. Depois da independência, o país foi vítima de um conflito armado que durou 27 anos, tendo seu fim em 2002, com a assinatura do Acordo de Lwena, município da província do Moxico, cuja ratificação se deu em 4 de abril de 2002, em Luanda, capital do país. Como consequência da prolongada guerra civil, quase toda a estrutura do país ficou deteriorada. Agora, com a chegada da paz, penso que, além de se olhar em todo país, é necessário olhar de forma especial para as crianças, como está fazendo o governo, mormente aquelas que não têm mais pai ou mãe, entes nos quais deveriam se espelhar para ter um futuro promissor.

Entendo funcionar como um imperativo categórico minha participação na reconstrução da nossa nobre Nação. Embora eu ainda não esteja formado, vejo que nada me impede de já participar dessa reconstrução por meio dos lucros da arte da poesia. Portanto, vou contribuir doando 50% dos lucros do Ecos d‘Angola àquelas crianças que, potencialmente, têm mais necessidades, pois, assim, do ponto de vista jurídico, estarei exercendo a cidadania, e do ponto de vista ético-cristão, estarei exercendo a solidariedade para com as crianças, já que Cristo diz, em Mateus 25:45, que quando deixamos de prestá-la a uma criança, a Ele deixamos de fazê-lo.

Você já escolheu a instituição que será beneficiada?

Não vou a Angola há quatro anos. Muita coisa mudou e já não tenho uma noção acurada de como as coisas funcionam. Entretanto, com o intuito de ter dados da instituição que receberá a doação, enviei uma carta ao Instituto Nacional da Criança (INAC) de Angola, com a finalidade de descobrir qual o orfanato mais carente e que tem recebido menos doações. Outra informação que solicitei na carta é que o orfanato tenha certificação de Utilidade Pública, de tal forma que a doação seja isenta de tributos.

De que forma será feita a doação?

A princípio, quando terminei o projeto do Ecos d’Angola, isso em 2008, pensei em fazer uma doação em valor. Seria muito mais fácil e tudo estaria resolvido em pouco tempo, penso. Mas, posteriormente, no fim de um dos encontros do Programa Palavra Aberta, do Unasp, conversei com o músico Filipe Tonasso e falamos sobre os dons. Ele me convidou a fazer poesias para o blog do projeto Geração 148, que seria colocado no ar brevemente, e, em seguida, continuamos a falar da importância da utilização dos dons para propagar a Palavra de Deus. A partir daí, veio-me a ideia de fazer a doação para as crianças da Angola não em dinheiro, mas sim em bens de primeira necessidade: brinquedos e uma Bíblia infantil para cada criança, para fazer com que elas conheçam Jesus e a religião dos princípios.