sexta-feira, novembro 10, 2006

Missionário na própria terra

Testemunho de um jovem que trabalhou em comunidade adventista negra de Santa Catarina

Vanderlei Ricken nasceu em Criciúma, SC, em 1969. Conheceu o evangelho na adolescência, por meio do irmão. Desde criança foi ensinado a ter reverência pelas coisas de Deus, em especial pela Bíblia. Quando passou a estudá-la mais profundamente, aceitou o chamado divino, seguiu os passos do irmão e uniu-se à Igreja Adventista (posteriormente, os pais e todos os irmãos também se tornaram adventistas).

É técnico em Química e bibliotecário do Colégio Adventista Central de Florianópolis. Casado com a professora cearense Vanderlande, mantém o site Verdade Online.

Para falar sobre o trabalho que desenvolveu no Valongo e da importância do espírito missionário, concedeu esta entrevista a Michelson Borges (a quem encaminhou ao adventismo, no fim da década de 1980).

O que é a comunidade do Valongo e como ela surgiu?

É uma comunidade bastante peculiar, que se distingue dos demais grupos rurais da região e é conhecida como Sertão do Valongo. Reservadas e formando uma grande família, moram no local cerca de 80 pessoas, divididas em 25 residências. O bairro pertence ao município catarinense de Porto Belo, distante cerca de 60 quilômetros de Florianópolis, mas a cidade mais próxima, Tijucas, fica a 12 quilômetros. O que chama a atenção nessa comunidade é a origem étnica de seus moradores e a religião que professam – são todos descendentes de africanos e são adventistas do sétimo dia.

A palavra “Valongo”, segundo os mais antigos, pode significar um local no meio da mata, onde se encontra um grande vale. Indícios apontam para o surgimento da comunidade como resultado da perseverança ou acomodação. No passado muitas famílias moravam no Sertão do Valongo, mas aos poucos, devido à escassez de madeira nativa e palmito, elas foram indo para outros lugares, permanecendo apenas três famílias de negros: Caetano, Costa e Fayal. Todos os valonguenses de hoje são membros dessas três famílias.

Há outras hipóteses para o surgimento da comunidade. Alguns acham que as famílias Costa, Fayal e Caetano sejam remanescentes dos 1639 escravos registrados na freguesia de Porto Belo, em 1851. Historiadores e mesmo movimentos negros de Florianópolis não dispõem de registros históricos que confirmem ter sido o sertão, no início de sua história, um quilombo.

No entanto, Regina Leopoldina Fayal, falecida em outubro de 1998, com 99 anos, contava que seus pais e outros ex-escravos foram os primeiros moradores da região, há mais de cem anos. A maioria dos habitantes do Valongo veio ao mundo pelas mãos de Dona Regina, que dos 30 aos 90 anos desempenhou a função de parteira da comunidade.

Outra versão para a origem da comunidade do Valongo (não confirmada por nenhum dos moradores mais velhos do sertão) é contada pelo senhor Abrão Manoel Godinho, que mora no município de Tijucas. Ao levar seu filho com o joelho machucado ao médico, conhecido como Dr. Nica, este lhe contou a seguinte história:

Quando a Lei Áurea foi assinada, alguns navios negreiros se dirigiam a Florianópolis. Antes de atracar, foram informados de que o tráfico de escravos estava agora proibido, e com medo de serem presos, os tripulantes mudaram de direção, adentrando a foz do Rio Tijucas. Próximo de onde o Rio Oliveira deságua, soltaram os africanos e queimaram as embarcações. Um grupo de negros fugiu para Timbé. Outro, teria se dirigido para Valongo. Tempos depois, os destroços dos barcos foram encontrados e o local passou a se chamar Bairro Nova Descoberta. Mas, como disse, nenhuma dessas versões está confirmada.

Como foi seu chamado para trabalhar no Valongo?

As histórias dos missionários sempre me empolgaram. Gosto de mudanças e de conhecer pessoas diferentes. Morei quase dois anos em Belém do Pará, dois anos no Ceará, alguns meses em Campo Grande, conheci minha esposa na Bahia e ficamos quatro anos no Sertão do Valongo.

Recebi o convite para morar no Valongo quando havia retornado do Ceará. Meu irmão, que é obreiro, soube que o casal que morava no Valongo antes de nós, Benedito e Elza, estava se aposentando. Ele telefonou para nós e explicou as grandes dificuldades que nos aguardavam. Aceitamos na hora.

Davi Livingstone recebeu uma carta de certa sociedade missionária perguntando se havia boas estradas para o interior da África. “É que queremos mandar outros missionários para ajudá-lo”, escreveram. E a resposta veio prontamente: “Se há pessoas prontas para vir somente se houver estradas boas, não quero que venham. Eu quero homens que venham mesmo que não haja nenhuma estrada.”

No que consistia o seu trabalho lá?

Fazia de tudo. Consertava rádios, chuveiros, tubulação, serviços de eletricidade, consertos de vidros, caixas d’água, pinturas, leituras de cartas e/ou documentos do pessoal, dava aulas de computação, inglês, música e flauta. Mas o mais importante era a contribuição espiritual, com classes de interpretação de textos, preparo de sermões e de pregadores, professores de Escola Sabatina e conjuntos musicais. Além disso, ajudava os departamentos da igreja de modo geral.

E qual o papel da igreja na comunidade?

Os valonguenses têm na igreja (prédio que se destaca logo que se chega à comunidade) a principal atividade social. Eles gostam muito de cantar e participar das atividades sociais. Além disso, a rádio Novo Tempo, de Florianópolis, ajuda muito, levando informação e entretenimento aos lares valonguenses.

Como a mensagem adventista alcançou o Valongo?

Tudo começou com um jovem chamado Mário Caetano. No ano de 1923 apareceu no Valongo um colportor missionário que pediu hospedagem na casa de Marcelino Marinho Caetano, pai de Mário. Como seu pai se negou a oferecer abrigo ao visitante, Mário (na época recém-casado e morando na casa dos pais) ofereceu seu quarto ao moço. Para não piorar a situação, o missionário resolveu ir embora no dia seguinte, bem cedo. E para demonstrar sua gratidão, deu o livro Nossa Época à Luz das Profecias, da Casa Publicadora Brasileira, de presente a Mário.

Nas horas vagas, quando não estava na lavoura de cana-de-açúcar ou no moinho de farinha, Mário lia o livro, com interesse. E foi ali que descobriu a mensagem da segunda vinda de Cristo e do sábado. Ele começou a falar aos outros sobre suas descobertas e, aos poucos, mais e mais valonguenses se convenciam da importância da mensagem daquele livro. Algum tempo depois, Mário deixou, inclusive, de produzir cachaça em seu alambique, por entender que Deus desaprova o consumo de álcool.

No dia 5 de janeiro de 1932, Mário foi batizado com sua filha Leontina (então com 14 anos). Outros crentes foram preparados para uma cerimônia posterior. A mãe de Mário aceitou a mensagem cinco anos depois, e o pai, Marcelino, renegou a família por aquela decisão.

Os cultos da comunidade do Valongo eram realizados, quase sempre, na casa de Mário, até que em 23 de novembro de 1962 foi inaugurado o primeiro templo (uma casa de madeira onde hoje moro com minha esposa). O templo atual, de alvenaria, foi inaugurado em 12 de novembro de 1994.

Então a Palavra de Deus exerceu profunda mudança entre os habitantes do Valongo.

Sem dúvida. A mudança que se operou no sertão do Valongo após a chegada da mensagem do evangelho foi realmente profunda, e mesmo pessoas de fora puderam perceber isso. Vera Teixeira, professora de Antropologia e pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina, esteve no Valongo em 1987, e descreve suas impressões da seguinte maneira: “Este grupo rural encontrou na religião um sentido de união que estimulou formas de solidariedade e possibilitou a positivação de sua identidade enquanto grupo, pois se antes eram os ‘pretos do sertão’, hoje os valonguenses são conhecidos como ‘os adventistas’.”

Que trabalho sua esposa desenvolveu na comunidade?

Conheci minha esposa no Instituto Adventista de Ensino do Nordeste (Iaene). Ela fez Magistério e Ensino Religioso lá. Na verdade, ela foi o motivo maior do nosso chamado, pois a parte mais importante de nossa missão era “educar uma nova geração para Deus”. Ela lecionava para crianças de primeira a quarta série, na única sala da escola da comunidade, todos os alunos juntos, num mesmo horário. Ela fez verdadeiros milagres com as condições de que dispunha. E também dava aula de pintura em tecido para as mulheres da comunidade, o que foi o maior sucesso. Vinham mulheres até de outros lugares para aprender a pintar com ela.

Qual é a sua visão de um missionário?

Segundo Ellen White, todos somos missionários a partir do momento em que nos convertemos. Quando juvenil, aprendi um corinho que nunca saiu do meu coração: “Um dia Cristo me falou que não é preciso eu transpor o mar para ser para Deus um missionário. É só seguir o Seu caminho e tu verás como é fácil ser para Deus um missionário.”

Ser missionário é, de uma forma ou de outra, se envolver de coração com a missão. Apresentar Jesus aos que nos rodeiam e àqueles com quem entramos em contato.

Desde sua conversão você sempre esteve envolvido no trabalho missionário. Como você avalia a importância desse tipo de trabalho para a vida espiritual do jovem?

Há uma citação que mantenho em minha Bíblia e que responde bem essa pergunta: “Meus irmãos e minhas irmãs, quereis romper o encanto que vos prende? Quereis despertar dessa indolência que se assemelha ao torpor da morte? Ide trabalhar, quer vos sintais dispostos a isto, quer não. Empenhai-vos em esforço pessoal para levar almas a Jesus e ao reconhecimento da verdade. Em tal trabalho encontrareis tanto um estímulo como um tônico; ele a um tempo despertará e fortalecerá." – Testemunhos Seletos, vol. 2, págs. 128 e 129.

Convivendo no ambiente secularizado da universidade, onde você se formou em Biblioteconomia, que tipo de testemunho é o mais eficaz ali? Como manter a fé no campus, frente aos ataques das filosofias seculares?

Na universidade encontrei as “espécies” mais exóticas possíveis e o exemplo ali é, sem dúvida, o maior testemunho. Mas não significa que isso dispense o testemunho falado. É preciso falar de Jesus aos outros. Quando evidenciamos nossas prioridades e valores cristãos, torna-se impossível não impressionar as pessoas (ainda que, por isso, alguns nos considerem “loucos”).

Acredito que quando não temos vergonha das nossas crenças e apresentamos um cristianismo equilibrado e coerente, conseguimos enfrentar as filosofias seculares e deixamos um rastro de luz por onde passamos.