Existem ideias que são defendidas como se fossem bíblicas, mas
que, na verdade, acabam atentando contra as próprias bases do cristianismo,
criando verdadeiras “quimeras” filosóficas, unindo péssima ciência com péssima
teologia, como diz o químico Marcos Eberlin. Entre essas ideias, podemos
destacar o evolucionismo teísta, também chamado de “evoteísmo”. Os defensores
dessa e de outras ideias afirmam que estão alicerçados na Bíblia e na ciência.
Será que é assim mesmo? Nesta entrevista, concedida ao jornalista Michelson
Borges, o astrofísico e engenheiro de software
Eduardo Lütz esclarece esse assunto.
Quais as
diferenças entre evolucionismo materialista, evolucionismo teísta e
criacionismo?
Correspondem a três cosmovisões distintas. No evolucionismo
materialista, ou talvez mais
precisamente, naturalista,
acredita-se que a vida teve origem espontânea graças a uma série de fatores que
se teriam combinado ao acaso. Ao surgir o primeiro organismo capaz de se
reproduzir sistematicamente, entram em ação os dois principais mecanismos
darwinianos: a reprodução, que pode gerar cópias com variações (processo em que
entra uma boa dose de acaso) e a seleção natural (regida por regularidades, não
aleatória em essência), que privilegia algumas variantes em detrimento de
outras, de forma que os organismos vão-se tornando mais e mais adaptados ao
ambiente ao longo de muitas gerações. Esse processo não tem objetivo e não
segue algum plano de aperfeiçoamento, não é unidirecional, mas molda as
espécies armazenando, de alguma forma ainda não esclarecida em nível de DNA,
informações nos indivíduos de cada espécie.
No evolucionismo teísta, acredita-se que Deus criou os seres vivos
modernos por meio da evolução darwiniana. Há quem proponha que Ele formulou as
leis físicas de tal maneira a tornar possível a origem espontânea da vida. Há
também a hipótese de que Deus teria dado origem à primeira forma de vida. Após
o surgimento do primeiro ser vivo, seja por intervenção divina especial ou seja
por processos puramente naturais (porém, criados por Deus), a vida evoluiria
mais ou menos da forma prevista por Darwin. Outra linha imagina que Deus já
criou o primeiro ser vivo com informações genéticas suficientes para iniciar um
processo de evolução controlada, não com base apenas em mutações aleatórias
podadas por seleção natural. Essa última ideia tenta resolver um dos problemas
mais sérios que afetam o evolucionismo naturalista: o de que mutações ao acaso
destroem tanta informação que a chance de aparecer algo útil no DNA é tão
remota que é muito mais provável todas as formas de vida se extinguirem antes.
Isso pode ser comparado a retirar, acrescentar e substituir aleatoriamente
letras na Bíblia esperando transformá-la na Enciclopédia Britânica. A probabilidade
de surgir qualquer coisa útil antes de se destruir toda a informação útil da
Bíblia é insignificante, muitíssimo mais baixa do que as pessoas tendem a
imaginar. Por isso há quem proponha que Deus teria criado um mecanismo para
provocar mutações de forma organizada, equivalente a alterar palavras em frases
de forma a respeitar uma gramática na analogia acima, ao invés de alterar
caracteres aleatoriamente.
Entre os evolucionistas teístas, existem aqueles que acreditam na
Bíblia como revelação divina, mas entendem os primeiros capítulos de Gênesis
como simbolizando apenas verdades espirituais, sem nenhuma pretensão de ser uma
narrativa de fatos históricos. Nesse meio, existem pessoas que se consideram
criacionistas, pois creem que Deus criou tudo. Apenas não acreditam que a vida
na Terra seja recente.
Quanto ao criacionismo, também há variantes. Mesmo entre os que se
dizem criacionistas bíblicos há mais de uma corrente. Mas o importante é que
existem os que se esforçam para seguir as melhores práticas de exegese e
hermenêutica para extrair o máximo possível de informação do texto bíblico, e
também é feita a comparação entre previsões bíblicas e científicas com o que se
observa na prática.
Quanto ao estudo da Bíblia, observam-se os sentidos originais das
palavras e expressões idiomáticas, estuda-se a gramática do texto original para
se obter o sentido mais fiel, utiliza-se o contexto imediato e o contexto mais
geral para resolver o máximo possível de ambiguidades ou aparentes
contradições. Algumas formas de entender um texto levam a contradições em
relação ao contexto, o que mostra que, ou a interpretação está errada ou o
texto realmente contém uma contradição. Porém, mesmo nos casos de aparente
contradição, têm-se encontrado sentidos simples e coerentes das expressões que
permitem harmonização do todo.
Quanto ao aspecto da pesquisa científica, há entre os
criacionistas os que defendem um conceito de ciência na linha rigorosa de
pioneiros como Galileu e outros, ou seja, não como uso do protocolo aristotélico
(observação, formulação de hipóteses, testes de hipóteses, etc.), mas como o
uso sistemático e coerente de métodos matemáticos eficientes tanto para
planejar experimentos quanto para avaliá-los (Estatística é parte indispensável
na maioria das situações) e, principalmente, para formular modelos, que devem
basear-se em estruturas algébricas. Quando se quer maior confiabilidade e
eficiência, usa-se essa metodologia tanto para o estudo da Bíblia quanto do
mundo físico.
Quais as
maiores incoerências e fragilidades do modelo evolucionista teísta?
Primeiro, ele herda quase todas as fragilidades do evolucionismo
naturalista. “Resolve” umas poucas por meio de uma abordagem que chega a
lembrar um pouco a do deus das lacunas.
Ao estudarmos a Bíblia com um nível de detalhe mais
próximo ao científico, observamos que há sinais muito claros que nos permitem
distinguir os tipos de textos bíblicos. Existem, por exemplo, profecias,
parábolas, poesias, provérbios e narrativas (que incluem genealogias, entre
outras coisas).
As história de Abraão, Isaque, Jacó/Israel, José e seus irmãos, o
povo de Israel com sua estada no Egito, sua volta para as terras compradas por
Abraão e a oposição dos posseiros, tudo isso possui formato claro de narrativa,
não de alegorias. A parte inicial dessa história está no livro de Gênesis.
Voltando gradativamente aos capítulos anteriores, vemos exatamente a mesma
estrutura falando dos ancestrais de Abraão até chegar a Noé, depois voltando
mais até chegar a Adão. Se uma parte é histórica, por que a outra não seria?
Exegeticamente, não faria sentido considerar os primeiros capítulos de Gênesis
como alegóricos se os seguintes, com a mesma estrutura, são literais. Também
não faz sentido hermeneuticamente, pois Jesus e os apóstolos (inclusive nas
epístolas) referiam-se aos primeiros capítulos de Gênesis como contendo
histórias literais. Até mesmo a origem da semana é atribuída à terraformação em
seis dias literais, seguida do sétimo dia para contato com Deus, conforme
mencionado e reforçado no Sinai.
Em função dessa e de outras razões, os criacionistas bíblicos que
enfatizam esse uso de técnicas para a análise de textos bíblicos entendem que
os primeiros capítulos de Gênesis são literais, ainda que em linguagem
embelezada e acessível, não técnica. Essa mesma análise é incompatível com a
alegação dos evolucionistas teístas de que os primeiros capítulos de Gênesis seriam
alegóricos.
Há ainda outra questão muito importante que vale a pena pinçar,
entre tantas outras. O criacionismo bíblico precisa levar em conta a mensagem
principal da Bíblia, que é o plano da salvação. Este ocorre em um contexto no
qual Deus criou tudo perfeito, houve rebelião e consequente “desotimização” da
vida na Terra, culminando em injustiça e sofrimento, os quais só podem ser
tolerados por Deus por algum tempo em função da liberdade de escolha que Ele dá
a Suas criaturas. Esse período de tolerância visa a completar um processo no
qual se possam avaliar plenamente as consequências do pecado (afastamento do
plano de Deus) e haja oportunidade para que os que quiserem sejam salvos para
viver eternamente, como era o plano original de Deus.
Porém, se imaginarmos que Deus criou os seres vivos por meio de um
longo processo evolutivo, com morte e crueldade desde o início, o próprio plano
da salvação perde o sentido. Salvar a humanidade de quê? De uma vida natural
com sofrimento e morte que Deus mesmo planejou? Salvar dos próprios planos
dEle? Salvar do processo evolutivo, que depende da morte de uns para o
nascimento de outros melhores? E a partir de que ponto vale o plano da
salvação? Quem foi o primeiro ser vivo a participar dele? Dinossauros serão
salvos? Australopithecus? E neandertais? Sapiens, somente? Onde está o limite?
Essas e outras questões vão surgindo e minando toda a base do cristianismo,
quando tentamos misturar evolução darwiniana com Bíblia. Não vejo como coerentes as
tentativas de conciliar essas doutrinas (evolucionismo e salvacionismo
bíblico).
Sempre existem versões mais coerentes e menos coerentes de cada
corrente de pensamento, graças à forma como as pessoas moldam suas crenças
quase sempre antes de ligar todos os pontos relevantes. No caso do criacionismo
bíblico coerente, admite-se que exista “evolução” no sentido de sistemas
sofrendo alterações ao longo do tempo, inclusive entre seres vivos. Mas não se
acredita que todas as espécies atuais vieram de um ancestral comum por um
processo evolutivo que teria durado centenas de milhões de anos. O
evolucionismo teísta já aceita essa hipótese às custas de introduzir
inconsistências graves em suas crenças sobre ensinos bíblicos fundamentais (leia mais sobre isso aqui).
Entidades como
a Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC2), famosos apologetas cristãos
como William Lane Craig e mesmo alguns defensores da Teoria do Design
Inteligente advogam a evolução teísta. Por mais que eles deem grande
contribuição em certas áreas, defender o evoteísmo é um “tiro no pé”, não?
Exatamente. Como já mencionei, se pararmos para analisar
cuidadosamente as consequências lógicas do evolucionismo teísta, cedo ou tarde
precisaremos descartar ou o evolucionismo ou a Bíblia. Na prática, a Bíblia tem
sido descartada, pois selecionar nela tudo aquilo com que não concordamos e
considerar esses itens como alegóricos elimina qualquer possibilidade de que a
Bíblia possa nos ensinar coisas úteis nas quais não acreditamos. Ou seja, ela
fica totalmente descaracterizada como fonte de informação. É o mesmo tipo de
desonestidade intelectual de Dawkins, ao afirmar que vida é o que tem aparência
de planejamento, descartando, assim, a priori, já por definição, toda e
qualquer evidência de planejamento. Assim fica muito fácil (e desonesto) dizer
que essas evidências não existem.
O livro Theistic Evolution: A Scientific,
Philosophical, and Theological Critique, editado por J. P. Moreland,
Stephen Meyer (também defensor do Design
Inteligente) e outros autores importantes, trata justamente desse cavalo de
Troia chamado “evolucionismo teísta” e se constitui, hoje, em uma das mais bem
fundamentadas e extensas críticas a esse híbrido evoteísta. Você concorda que
esse modelo filosófico é um cavalo de Troia que deve ser combatido?
Concordo. É uma tentativa de união de duas coisas incompatíveis.
Isso só pode ser feito pela descaracterização de uma das componentes. Conforme
já mencionei, a componente que tem sido descaracterizada é a Bíblia. Além disso,
não se trata de tentar harmonizar Bíblia e Ciência por dois motivos. Primeiro,
porque desautorizar afirmações bíblicas não pode fazer parte da harmonização de
qualquer coisa com a Bíblia. Segundo, porque evolução darwiniana não é Ciência.
É uma estrutura conceitual específica o suficiente para ser filosoficamente
atraente e vaga o suficiente para que possamos encaixar nela virtualmente
qualquer coisa e depois dizer que tudo é evidência de que a ideia estava certa.
Não há uma formalização matemática fundamental e geral desse modelo conceitual,
apenas pequenos modelos aqui e ali para tratar de temas periféricos. Ciência é
uma caixa de ferramentas matemáticas das quais Darwin não fez uso para montar
seu esquema filosófico.
Seria muito bom se evolucionistas investissem ainda mais do que já
estão começando a investir na formalização da doutrina evolucionista. Quando se
transforma algo assim em uma teoria científica, fica muito mais fácil de
analisar as forças e fraquezas, bem como avaliar objetivamente as evidências,
não da forma como tem sido feito. Do jeito que está, não se trata de uma teoria
científica, mas de um framework
conceitual não formal (não científico, não explicitamente matemático). Há frameworks científicos, como a Mecânica
Quântica. Seria interessante transformar o conceito de evolução biológica em um
framework científico (matemático) ou
em uma teoria científica específica. Todos ganhariam com isso.
O mesmo seria desejável também do lado criacionista bíblico,
evolucionista teísta, etc. A tendência é que se combatam argumentos
qualitativos com qualitativos, competindo-se para ver quem comete mais erros
técnicos graves durante a argumentação. E cada um também gosta de dizer que
defende a ciência, mas geralmente define essa palavra da mesma forma
inconsistente que tem aparecido na literatura de Filosofia da Ciência. O
resultado é que cada um chama de ciência o que quiser e continua argumentando
apenas na esfera qualitativa, sem modelos matemáticos reais que tenham sido
provados estar em harmonia com o mundo físico de tal maneira que os axiomas de
suas estruturas algébricas sejam boas aproximações de características
específicas do mundo físico.
Sem algo assim, o debate tende a prosseguir para sempre e cada um
sempre achará que está coberto de razão e que os oponentes são desonestos ou
estúpidos (embora essa possibilidade possa se concretizar de vez em quando).
Resumindo, a falta de objetividade e formalização matemática que
vemos por todos os lados é um ambiente fértil para que ideias inconsistentes
como a proposta evolucionista teísta sejam consideradas como coerentes e possam
ser amplamente aceitas. Nesse nível, temos opinião contra opinião e cada um
prefere a sua.