segunda-feira, novembro 24, 2014

Entrevista: salvo da morte

Sueli e Orlando Mário Ritter
Orlando Mário Ritter nasceu em São Paulo, em 1957, e atualmente reside em Artur Nogueira, SP. Filho de Orlando Rubem Ritter e Edda Balzi Ritter, obreiros atuantes por muitos anos no Instituto Adventista de Ensino, hoje Unasp, campus São Paulo, Mário passou sua infância, adolescência e parte da juventude naquele ambiente. Após concluir o segundo grau em 1976, ingressou na Faculdade de Engenharia Industrial. Antes de se formar, concluiu que o que ele queria mesmo era se tornar professor, e transferiu seu curso para o de Licenciatura e Bacharelado em Química, a fim de se habilitar a dar aulas de Ciências, Matemática e Química. Em 1985, por necessidade da Obra, iniciou o curso de Pedagogia com habilitação em Administração Escolar. E 1993, ingressou no curso de Estudos em Teologia, no Unasp, concluindo-o em 1998. Em julho de 1981, casou-se com a enfermeira Sueli Maris Leite Ritter e tiveram dois filhos: Orlando Rubem Ritter Neto, em 1983, e Rafaela Maris Ritter, em 1988.

Tendo sido diretor de duas escolas, foi depois indicado para o Departamento de Educação da Associação Paulista Sul, onde permaneceu até o fim de 1999, acumulando também os departamentos de Saúde e Temperança. Em 1999, foi ordenado ao ministério pastoral e, em dezembro do mesmo ano, foi eleito secretário da Associação Paulista Sul, função que ocupou até dezembro de 2002. Em 2003, recebeu um chamado para atuar no departamento de Educação e Saúde da União Central Brasileira, onde permanece até hoje.

Nesta entrevista, concedida a Michelson Borges, ele fala sobre a experiência mais marcante e difícil de sua vida.

O senhor “encarou a morte” e sobreviveu. Fale um pouco sobre essa experiência.

Em junho de 2013, mesmo sem sentir dor, eu sentia um desconforto abdominal. Fui ao médico e fiz alguns exames, e uma semana depois tive o diagnóstico de câncer no cólon. Foi marcada a cirurgia para o dia 7 de julho de 2013 e, se tudo desse certo, em cinco dias eu teria alta. Lamentavelmente, não foi isso o que aconteceu. Devido a um acidente cirúrgico (perfuração do ureter), passei por quatro grandes cirurgias, quatro pequenas, 73 dias de internação, sendo 30 na UTI, entubado e em coma. Um dia antes da terceira cirurgia, meu estado de saúde era tão delicado que foi necessário aplicar três eletrochoques para “estabilizar” o coração. A urina que vazava no abdômen rompeu a costura do intestino (deiscência da anastomose), causando peritonite (infecção e inflamação da cavidade abdominal), e quando a pressão aumentou pelo acúmulo de dez litros, o líquido começou a “migrar” para a cavidade pulmonar, com cerca de 1,5 litro, tornando extremamente difícil a respiração. A notícia do óbito só não foi anunciada porque Deus agiu poderosamente evitando a morte certa. Andei pelo “vale da sombra da morte” e milagrosamente recebi de Deus uma nova oportunidade de viver.

Um dos médicos me disse: “Seu caso é mágico, eu já perdi pacientes com problemas semelhantes e mais jovens, com menos intercorrências e em hospitais renomados, e você está vivo!” Eu, mesmo muito fraco, o interrompi e disse: “O senhor sabe qual é essa ‘mágica’? O poder e o amor de Deus em resposta a muitas orações feitas pela grande família cristã.”

Em dezembro de 2013, fiz uma tomografia e foram confirmadas metástases no fígado e na suprarrenal esquerda. Ainda existe um longo percurso a trilhar, mas estou confiante em Deus e certo de que posso contar novamente com as orações da nossa grande família cristã.

Qual foi a sua reação ao voltar do coma tantos dias depois? O que lhe passou pela cabeça?

Fomos criados por Deus de maneira assombrosamente maravilhosa. Mesmo em coma por trinta dias, meus ouvidos continuavam funcionando dentro da UTI, e muito do que foi dito quando eu estava desacordado ficou gravado no subconsciente. Ao despertar, ainda muito confuso, eu já tinha uma noção de que meu estado era muito grave. Não sabia por quantas cirurgias tinha passado, mas sabia que estava com anemia profunda, que recebi transfusão de muitas bolsas de sangue, tinha fraqueza extrema, insuficiência respiratória e tinha noção até mesmo das condições climáticas, de uma ou duas fortes frentes frias que haviam passado por São Paulo naqueles dias – provavelmente alguém deve ter comentado sobre o forte frio que fazia.

Perguntei para minha esposa: “Que dia é hoje?” Ela respondeu, para minha grande surpresa: “Hoje é 6 de agosto.” Na hora, minha cabeça se encheu de perguntas que demoraram mais de quatro meses para ser respondidas. Conforme eu ia sabendo sobre o que havia ocorrido, no mesmo momento, vinham à mente fatos que eu teria ouvido na UTI. Segundo os médicos, nesse período depois do coma, que durou cerca de 15 dias, eu passei pelos “sonhos vívidos” em que a realidade se mistura com a imaginação de forma tão real, tão clara, que se tem certeza de fatos que nunca aconteceram e outros que aconteceram, mas com uma “realidade” totalmente diferente da real. Esses “sonhos” ficaram tão bem gravados, que, mesmo já tendo passado vários meses, eu poderia descrever cada um deles com mínimos detalhes por horas a fio.

O médico espiritualista ficou surpreso pelo fato de o senhor não ter “visto” o famoso “corredor de luz” nem espíritos. O que o senhor “viu” naquela ocasião?

A cada dia, já no quarto, eu recebia a visita de muitos médicos que me examinavam, conversavam com minha esposa e depois me perguntavam alguma coisa ou contavam algo engraçado, para descontrair o ambiente. Um médico me perguntou, depois de uma breve explicação sobre minha “quase morte”: “Você passou pelo túnel de luz? Você viu os espíritos? Eu respondi: “Sim, passei pelo túnel de vidro, mas não vi nenhum ‘espírito’.” Ele tornou a perguntar: “O que você viu, então?” O que eu “vi” de forma surpreendentemente clara – e não foi por pouco tempo – foi a história da humanidade, conforme o relato bíblico. Vi desde o fim do dilúvio até momentos antes da volta de Cristo, quando o mar começava a engolir as ilhas e cidades costeiras, até que subitamente tudo ficou escuro e não vi mais nada.

O médico então perguntou novamente: “Você não viu a luz no fim do túnel?” Respondi que havia “visto” cenas incríveis da História, mas não luz alguma no fim do túnel. Então o médico explicou o que ocorre nesse estado de “quase morte”: conforme vai diminuindo a oxigenação do cérebro, começam a surgir imagens vindas do subconsciente na forma de “túnel”, e provavelmente eu não tenha visto o fim do túnel porque minha condição de oxigenação melhorou e o “sonho vívido” foi forte o suficiente para ficar gravado, mas sem ser finalizado.

Mais uma vez agradeci a Deus por não ter morrido e também fiquei feliz em saber que os sonhos podem revelar imagens que estão latentes no subconsciente, e que no meu caso não incluíam “espíritos” de forma alguma!

Houve algum momento específico em que sentiu a presença de Deus ao seu lado?

Nestes meses de luta, sofrimento e em alguns momentos de incerteza, minha esposa e eu passamos a orar, compartilhar tudo com Deus e até mesmo clamar por todas as coisas, inclusive as pequenas. Também reforçamos as orações por temas e pedidos específicos.

Nos dias em que estive na UTI, o sofrimento, a angústia, as decisões importantíssimas sobre a vida recaíram sobe minha esposa, que, se não fosse Deus lhe conceder força sobre-humana, também teria sucumbido. Ela disse que nos doze primeiros dias tudo estava indo de mal a pior, nada dava certo, e no décimo primeiro dia ela sentiu que iria me perder. As orações pareciam não ter resposta, até quando por inspiração divina ela pediu que eu fosse ungido antes da terceira cirurgia. Ela orou a Deus: “Senhor, quero muito que meu marido seja curado, mas eu o entrego em Tuas mãos.” A unção demorou um pouco e atrasou o início da cirurgia. Os médicos, que não entendiam bem o que é uma unção, ficaram um pouco incomodados com a demora.

O médico cirurgião abriu meu abdômen, tirou mais dez litros de líquido, examinou e não viu nada de errado. Quando ia fechar pela terceira vez, sem descobrir o que estava acontecendo, Deus interveio poderosamente. O Espírito Santo impressionou a mente do médico de tal maneira que ele resolveu revisar tudo pela segunda vez. Algum tempo depois, o cirurgião olhou para a equipe e falou: “Valeu a pena ter esperado a unção. Descobri o que aconteceu: o líquido que inunda o abdômen e os pulmões é urina proveniente do ureter direito perfurado.” Naquele momento, mesmo sabendo que meu estado ainda era crítico, minha esposa diz que sentiu como se Deus a tivesse colocado no colo; sentiu uma alegria indescritível, uma paz interior que só Deus pode conceder. Ela perguntou ao médico: “Doutor, estamos de novo na luta?” E ele respondeu: “Sim, estamos na luta!”

Depois de 55 dias no hospital, tive alta e voltamos para nossa casa, em Artur Nogueira, para recuperar as forças, as hemoglobinas (estavam em 8,8 e o ideal é entre 14 e 16), o peso (estava 20 quilos mais magro), e me preparar para a primeira quimioterapia.

Fiz todos os preparativos e consultas antecipadas e foi marcada a primeira quimioterapia, chamada de “forte” (de uma série de vinte, sendo intercaladas dez “fortes” e dez “fracas”), para o dia 7 de outubro, e fui para São Paulo (minha esposa dirigia o carro). Quando cheguei à clínica, o médico tinha se esquecido de agendar a quimioterapia e de preparar os medicamentos, e só daria tempo de fazer a mais fraca. Fiquei desapontado, e depois de orar, decidi que faria a mais “fraca”.

Fiz a “químio”, não tive nenhuma reação aparente e voltamos para casa tarde da noite, extenuado de tal maneira que não conseguia segurar o pescoço, de tão “pesada” que estava a minha cabeça, por causa da fraqueza geral que ainda sentia.

Dias mais tarde, vi nesse “esquecimento” do médico mais uma vez a presença e a poderosa proteção de Deus. Eu estava com uma bactéria hospitalar latente (Klebsiella pneumoniae), que despertou com a quimioterapia, provocando febres diárias de até 40º, sensação de morte iminente, calafrios, suadouros e perda de mais seis quilos. Segundo vários médicos afirmaram, se tivesse sido aplicada a “químio” forte, provavelmente eu não teria resistido. Novamente, senti bem de perto a presença de Deus, que me livrou. Porém, por causa dessa infecção, voltei para o hospital e fiquei mais 18 dias internado.

Em que sentido essa experiência mudou sua maneira de ver a vida?

Quando acordei e aos poucos me dei conta de uma “nova realidade”, como sequelas permanentes, longos sofrimentos, tratamentos que podem se prolongar por anos, novas cirurgias, percebi que a tendência natural do ser humano é de entrar em desespero. Tive muito tempo para refletir, meditar na Palavra de Deus, orar e receber visitas de pessoas que, estou certo, foram enviadas por Deus, como anjos, para me animar, consolar e orar comigo. Meu passado eu conheço, mas não posso alterá-lo. O futuro, por mais que eu sonhe e planeje, a Deus pertence. Me resta o presente, o hoje, o agora. Estou aprendendo a viver e a depender de Deus. Tudo o que faço, todas as minhas decisões, procuro antes “conversar” com Deus em pensamento, e Ele tem me concedido uma paz interior como nunca antes tinha sentido.

Minha vida está nas mãos de Deus. Aprendi a depender dEle em todas as coisas, por menores e insignificantes que possam parecer. Deus operou em mim o milagre da vida, mas aprendi que tudo o que estiver ao meu alcance devo fazer. O que estiver ao alcance da medicina, dos médicos e dos medicamentos, Ele dará sabedoria, habilidade e bênção para que seja feito segundo a vontade dEle. O que for impossível ao homem fazer, Deus, segundo Sua vontade, poderá operar milagrosamente.

O senhor sempre cuidou da saúde. Como entende/racionaliza essa situação pela qual passou?

Sempre cuidei do meu corpo e, de fato, tive boa saúde. Nunca fumei, nunca bebi e nunca usei drogas. Sempre evitei comer fora de casa e o meu intestino funcionava regularmente. A última vez – antes dessa “maratona” que tenho corrido – que fiquei internado em um hospital foi aos quatro anos de idade, com diagnostico de difteria ou crupe (nessa ocasião, Deus também me salvou milagrosamente). O dia 28 de junho de 2013 foi provavelmente o dia mais triste da minha vida, quando recebi o resultado positivo de um adenocarcinoma no cólon. Questionei meu médico e a resposta foi: “É o mesmo que ser atingido por uma bala perdida”, pois pesam os fatores estilo de vida, em cerca de 50%, os fatores ambientais, como poluição, riscos químicos e biológicos, em cerca de 25%, e os fatores genéticos e hereditários, com cerca de 25%.

A semana que se seguiu foi de muita oração e expectativa para a cirurgia. Na segunda-feira, 1º de julho, fui internado no hospital para uma grande bateria de exames pré-operatórios e foi marcada a cirurgia para o dia 7. Todos os médicos me tranquilizaram dizendo que não seria nenhum “bicho de sete cabeças”, e que em cinco dias eu estaria em casa. Em 30 dias poderia voltar ao trabalho.

A primeira pergunta que veio à minha mente foi: “Por que Deus permitiu a instalação da doença e depois o acidente cirúrgico?” Poucos dias depois, eu já havia mudado de pensamento e agora eu penso que tudo colabora para o bem dos que amam a Deus, e isso não me preocupa mais. Já tenho algumas respostas, outras só terei no Céu. Mas, por causa da doença e da maneira como Deus agiu, alguns parentes próximos já se decidiram pelo batismo, só estão esperando que eu “aguente” batizá-los. Outros, só de ouvir minha história, como o pai da instrumentadora do hospital, que acompanhou as quatro cirurgias, decidiram estudar a Bíblia. Médicos não cristãos, que puderam ver a atuação direta da mão de Deus em salvar minha vida, também foram impressionados, entre tantas outras pessoas que eu hoje desconheço e que um dia me serão apresentadas. Fui beneficiado pelas orações, mas a igreja e as pessoas que oraram também foram abençoadas.

O que diria para um leitor que estivesse enfrentando uma doença complicada?

Antes de tentar saber dos porquês, dos “culpados”, devemos compreender que vivemos num mundo de pecado. A luta não é contra a carne e o sangue, e sim uma batalha muito maior entre principados e potestades espirituais, entre o bem e o mal, entre Cristo e Satanás, muito além das nossas forças. Somente poderemos ser vencedores em Cristo Jesus. Enquanto aguardamos o dia da volta dEle, o grande dia da glorificação, mesmo nossas vidas sendo milagrosamente salvas, ainda carregaremos as consequências do pecado e das nossas próprias escolhas, que também levam à dor, à doença e à morte prematura.

O amanhã não me preocupa mais, porque estar vivo hoje já é um milagre. Vivo tempo emprestado por Deus. Não penso mais no futuro como antes, pois tenho vivido e me preparado dia após dia para a volta de Jesus.

Mas o senhor tem planos para o futuro...

Quando agradeci a Deus, pela primeira vez ao acordar do longo sono na UTI, prometi que não importava quanto tempo de vida Ele me concederia, eu iria em cada oportunidade testemunhar do Seu amor, do Seu poder, da Sua misericórdia. Durante as aplicações da “químio”, falo aos demais pacientes da clínica sobre alimentação saudável, sobre a fé, a oração, sobre os Centros de Vida Saudável da Igreja, dos nossos livros e de como Deus atua e atuou em minha vida. Muitos estão impressionados e já estão mantendo contato fora do ambiente da clínica. Teve até uma senhora que me perguntou sobre um canal de TV que fala sobre fé e Deus, a Novo Tempo. Aí eu respondi com ênfase: “Essa é a minha TV.”

Se o Senhor permitir, quero também dedicar à Sua obra os oito anos que ainda tenho até a jubilação. E também quero aproveitar, como nunca antes, cada minuto para ficar com a família, ver os netos crescer, acompanhar os filhos nas lides da vida, com os demais familiares, e permanecer ao lado da minha esposa que deu tudo de si para me acompanhar. Não tenho grandes ambições. Quero ver Cristo voltar!

A quem mais agradece, além de Deus?

Agradeço à minha família, filhos, genro e nora, meus pais, cunhados e cunhada, irmãs, enfim, a todos que se empenharam e fizeram, e ainda estão fazendo a diferença na minha vida. Também quero agradecer aos muitos pastores e amigos que foram ao meu leito e oraram comigo e com a Sueli, enquanto eu estava em coma, no quarto do hospital e depois em casa. Agradeço aos médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, ao serviço de capelania, com visitas e orações diárias, ou seja, ao Hospital Adventista de São Paulo, que muito me ajudou e ainda realiza esforços para que eu me recupere. Quero agradecer ao pessoal da Educação Adventista, professores, diretores, funcionários e até mesmo aos alunos que oraram intensamente pela minha recuperação. Aos escritórios da União Central Brasileira, das Associações paulistas, outras Uniões e Associações por este Brasil afora, toda a Divisão Sul-Americana, muitas igrejas inteiras e pessoas dos cinco continentes, enfim, a todos vocês meu muito obrigado. Eu sou um milagre do amor e do poder de Deus! Que Ele seja louvado!

sexta-feira, setembro 26, 2014

Evangelismo a 50 graus abaixo de zero

Missionário na Mongólia
Elbert Kuhn nasceu em Taquara, RS, no dia 19 de julho de 1969. Cursou o ensino fundamental no Colégio Adventista Pr. Ivo Souza, em Rolante, e o ensino médio no Instituto Adventista Cruzeiro do Sul (IACS), em Taquara. Começou a faculdade de Teologia em 1988. Trabalhou em Bento Goncalves, por dois anos, depois Sarandi, em Porto Alegre, por três anos, e em Camaquã, também em Porto Alegre, por quase três anos. Foi pastor na Igreja Central de Curitiba, PR, e concluiu o mestrado em Teologia em 2004. Ainda pretende cursar o doutorado na Andrews University. Gosta muito de passar tempo com a família, os irmãos e os cunhados. Também gosta de viajar, conhecer lugares, pessoas e culturas. É casado há 20 anos com Cleidi Kuhn, formada em Pedagogia com pós-graduação em Terapia Familiar. Nesta entrevista concedida ao jornalista Michelson Borges, o pastor Kuhn fala de seu trabalho na Mongólia e dos desafios de evangelizar aquele país.

Fale um pouco sobre a Mongólia: cultura, povo, hábitos curiosos, clima, etc.

A Mongólia e um país situado no norte Asiático, que faz divisa com duas grandes potências mundiais – ao sul, com a China, e ao Norte, com a Rússia, particularmente a Sibéria. É o país do grande conquistador Gengis Khan, que por volta do século 12 quase conquistou toda a Europa e a Ásia. É um país de clima extremamente difícil, onde as temperaturas giram entre menos 20 e menos 55 ºC durante os sete meses de inverno. Tem a capital mais fria do mundo, Ulan Bator. A Mongólia ainda e conhecida como um país de nômades, “a country with no fences”. Um país sem cercas, como eles gostam de dizer. Ainda hoje a atividade primária é o cuidado dos rebanhos de ovelhas, cabritos e cavalos. Eles vivem em tendas chamadas “Gers”, fáceis de montar e desmontar, para que eles possam mudar de região, de acordo com a necessidade dos animais.



A alimentação é precária para a maioria das pessoas. O solo é árido e tudo aquilo que requer mais de três meses para crescer não se produz na Mongólia, em função do frio. A base da alimentação é a carne, com ênfase na gordura. O consumo de álcool e tabaco é muito alto, por isso a saúde do povo em geral é comprometida. Uma curiosidade com relação a isso foi um dia em que a Cleidi viu um bebê de poucos meses com um pedaço de gordura pura de carneiro, do tamanho de uma mão, na boca, como se fosse uma chupeta. São as tradições passadas de geração a geração.

Os mongóis em geral são amigos e hospitaleiros. Sempre dispostos a ajudar quando preciso.

Quais são as condições de trabalho nesse país? Como vivem os irmãos e os pastores?

As condições de trabalho são muito desafiadoras, devido ao clima, às distâncias e à precariedade do transporte. Em toda a Mongólia apenas um aeroporto, o da capital, tem asfalto. Todos os demais aeroportos são de estrada de chão batido, e os aviões, extremamente velhos. Muitas vezes, enviamos nossos jovens líderes para regiões remotas, alguns lugares a mais de dois mil quilômetros de distância, a fim de fundar igrejas. Lá eles chegam com uma mala de roupa e alguns materiais. Assim foi iniciada a maioria das igrejas na Mongólia.

A vida de muitos de nossos pastores não é nada fácil, com recursos limitados que muitas vezes não são suficientes para a comida diária. Deus tem aberto portas e hoje a vida deles tem melhorado.



Como e quando teve início a obra adventista aí?

No ano de 1991. Um casal de jovens norte-mericanos decidiu ir como voluntários a algum lugar do mundo onde não existissem cristãos e tampouco adventistas do sétimo dia. O sonho deles era ir à China, mas descobriram então que na China já havia adventistas. Estudando o mapa, viram que a Mongólia não tinha adventistas, e decidiram ir para lá.

Na época, eles não tinham nenhum apoio oficial da igreja. Eram missionários voluntários, que foram para a Mongólia por meio de um ministério de apoio chamado Adventist Frontier, mas eles tinham que levantar os próprios recursos.

Chegaram à Mongólia em 1992, logo após a queda do sistema comunista. A Mongólia era dominada ate então pela ex-União Soviética. O começo foi muito difícil, pois, com a saída dos soviéticos, o país ficou sem sistema de governo e sem recursos. Por muito tempo, as pessoas não tinham sequer o que comer, mas aos poucos foram encontrando a forma de governo e o país começou a se reorganizar.

Brad e Cathie Jolly lançaram os fundamentos da igreja adventista, traduzindo materiais, estudos bíblicos, alguns livros de Ellen White, como o Caminho a Cristo, e partes do Novo Testamento.

Os missionários Brad e Cathie Jolly

Em seguida, chegou uma missionaria coreana-americana, Joanne Park, que ajudou no processo de organizar grupos pequenos de estudos. Infelizmente, Brad contraiu câncer de estômago em função das dificuldades que enfrentavam. Mesmo extremamente debilitado, não quis voltar aos Estados Unidos e continuou traduzindo e preparando materiais. Faleceu cumprindo o dever.

Que tipo de materiais da igreja são produzidos aí?

Nossa prioridade é a produção de livros, estudos bíblicos e materiais educativos, de família, saúde, a Licao da Escola Sabatina, Manuais da Igreja, de Ministros, de Anciãos. Graças a Deus, temos tido muito apoio para que isso seja feito. Sem livros, a pregação se perde. Nosso povo precisa ter à disposição materiais a fim de ajudá-lo no processo de mudança de hábitos e valores.



Fale um pouco sobre o primeiro batismo adventista, ocorrido em 1993.

No ano de 1993, como resultado do trabalho dos primeiros missionários voluntários, duas jovens foram batizadas pelo então presidente da Associação Geral, pastor Robert Folkenberg. Davakhuu, que hoje é a coordenadora acadêmica de nossa escola de Inglês, e Enkhee, nossa diretora de saúde e temperança. A semente germinou e hoje temos a alegria de tê-las ainda como membros fieis e atuantes da Igreja Adventista na Mongólia.

Pastor Folkenberg batiza Davakhuu e Enkhee

Como é a interação de vocês com os budistas?

Essa é uma pergunta interessante. A Mongólia é um país budista, mas de uma religião muito misturada com outras. Como nômades, que mudam de um lugar para outro facilmente, assim também os mongóis vivem com relação à religião. Alguns mongóis brincam que pela manhã oram a Buda, no almoço para Deus e à noite convidam o xamã para o jantar.

Como eles tiveram a religião exterminada pelo comunismo, hoje vivem de forma extremamente secularizada. Apreciam a discussão religiosa, desde que não se imponham normas e limites. Temos uma relação de amizade e respeito. Com eles, e necessário primeiro estabelecer a confiança e a credibilidade. Depois de terem certeza de que podem confiar em você, as portas se abrem.

Como apresentar Jesus a um budista? Qual a abordagem ideal? Que cuidados devem ser tomados?

Como disse, o primeiro passo é se colocar no lugar deles e imaginar como você, se fosse budista, receberia a mensagem do cristianismo. E preciso muito respeito, muita oração, muita sabedoria e tato, a fim de que os laços não sejam quebrados no afã de querer simplesmente batizar alguém. Essa não deve ser a abordagem. Existem crenças deles tão ou mais fortes que as nossas, e não será em um curto período de tempo que essas crenças serão desfeitas. Temos pessoas que frequentam nossa igreja há mais de três anos, mas ainda têm dúvidas. Não se pode apressar o amadurecimento deles no cristianismo. Pode-se ajudar, mas não apressar.

Apenas a titulo de curiosidade: temos muito no cristianismo a ênfase no sacrifício de Deus em nosso lugar, certo? Isso toca nosso coração e nos leva às lagrimas muitas vezes. Ao entendermos esse sacrifício de amor, somos compelidos a nos entregar de corpo e alma. O budista nos olha e diz: “Só o Deus de vocês morreu. É porque não era um dos ‘maiores’. O Deus top jamais morreria.”

Quais os maiores desafios para a evangelização da Mongólia?

Até agora, o maior desafio foi quebrar a barreira do preconceito contra os cristãos. É muito difícil para um mongol deixar os laços de família. Ser mongol é ser budista ou shamanista, e aceitar sozinho uma nova fé, novos amigos, nova forma de viver e pensar. Enquanto o país viveu as crises financeiras, a religião ainda era uma forma de trazer esperança a muitos. Hoje, com a descoberta de grandes minas de cobre, carvão, ouro, urânio e outros minérios, o que se vê e um desejo desenfreado por melhores condições de vida. Isso foi o que se viu nos países do leste europeu após a queda do comunismo. Por um período de 10 a 15 anos, a busca pelo cristianismo foi tremenda. Não é mais o que acontece. Hoje há um retorno às religiões tradicionais desses países e um desencanto com o cristianismo.




O que o evangelho tem feito na vida dos mongóis que o aceitam?

Creio que o evangelho tem trazido esperança e liberdade. Esperança para um povo que sofre e não tem para onde ir quando os problemas chegam. Esperança de uma família bem ordenada. Esperança de uma saúde melhor. Esperança de um mundo melhor. Liberdade dos hábitos, das tradições, dos vícios, da parte ruim da cultura.

Fale um pouco sobre o projeto com crianças, que está em seu coração.

Quer mudar a história de um país, comece a ensinar as crianças. Ajude-as a pensar, a fazer escolhas sábias, a tomar decisões de longo prazo, e dê a elas condições de fazer tudo isso. Por exemplo, um menino, filho de mongóis, aprendeu acerca dos hábitos alimentares ensinados na Bíblia, e hoje, com sete anos de idade, é um vegetariano saudável. A ênfase aqui não está no fato de ele ser ou não vegetariano, mas na escolha feita. Contra a cultura, contra os hábitos, contra família, contra tudo, ele tomou uma decisão. Aquilo que se ensina a uma criança jamais será esquecido.

Temos projetos com crianças que têm atraído os pais. Por exemplo, em nossa escola adventista servimos o almoço para as crianças. Ao contrario das outras escolas, não servimos café nem doces. Quando as crianças chegam em casa e contam, os pais vêm à escola, alguns bravos, e perguntam por que agimos assim. Quando explicamos as razões científicas e de saúde, eles saem felizes e valorizando a escolha da escola para os filhos. Temos dado muita ênfase aos valores, já que na Mongólia os valores são muito relativos e muitos se perderam no tempo. Temos anualmente projetos que visam a esses propósitos, e nas igrejas, na escola, em nossos acampamentos para crianças, temos visto por que Jesus tinha um cuidado e um carinho grande por elas.




A massificação da informação e suas armadilhas está na Mongólia também. Certo dia, eu estava a quase dois mil quilômetros da capital visitando uma pequena vila, e fui à central telefônica enviar um e-mail. Cada pequena vila tem uma central com dois ou três computadores para as pessoas se comunicarem. Ao meu lado, três garotos de uns sete anos de idade olhavam a tela e riam. Olhavam a tela e fechavam os olhos. Fiquei curioso e com o canto do olho percebi que eles estavam olhando pornografia. São danos irreparáveis na mente dessas crianças; por isso, como igreja, precisamos fazer nosso melhor, e o mais rápido possível, porque, se não, perderemos a batalha e amanhã poderá ser muito tarde.

Por que decidiram reservar uma parte do prédio da União para abrigar estudantes universitários?

A Mongólia é um país interessante do ponto de vista da divisão populacional. Tem três milhões de habitantes, dos quais 1,3 milhão vive na capital. As cidades são pequenas vilas, e quando os jovens se formam no ensino médio, têm que mudar para a capital a fim de continuar os estudos. Ao chegar à capital, vão morar em repúblicas, e normalmente o que se tem visto é que no fim da faculdade não estão mais na igreja. Queremos e precisamos mudar essa realidade.

Decidimos reservar dois andares de nosso prédio e fazer deles dormitórios. Como não temos faculdade, damos a nossos jovens toda a estrutura de nossos colégios, com capelão, cultos, seminários, etc. A única diferença é que no horário escolar eles vão à escola pública ou privada. Queremos que no fim do período de estudos eles estejam comprometidos em ser fieis a Deus e à igreja.




Por que você decidiu ser missionário numa terra tão distante?

Foi plano de Deus. Não tem outra explicação. Jamais fiz uma oração sequer para ser missionário. Jamais enviei um e-mail com esse pedido. A única coisa que a Cleidi e eu sempre tivemos claro foi o chamado. Se Deus e a igreja precisarem de nós, iremos. Muitas vezes sofremos, e muito. Muitas vezes não entendemos o porquê, mas sempre, ao olhar para trás, temos a satisfação de ver a mão de Deus a nos guiar e uma tremenda alegria de poder estar fazendo o que Deus quer que façamos.

Os brasileiros que trabalham como missionários em outros países têm alguma vantagem em relação a missionários de outras nacionalidades?

E difícil dizer se há vantagens. Depende de muitos fatores. Creio que nossa vantagem está em nossa facilidade de nos adaptarmos mais facilmente a diferentes culturas. Na criatividade em resolver problemas e na forma positiva com que encaramos a vida. Creio também que em função de nossa igreja no Brasil ser muito dinâmica, crescemos com muitas atividades, programas e projetos, o que ajuda ao ir ao campo missionário. Creio que uma grande desvantagem é nosso pobre domínio do inglês. Sem ele, nossa capacidade de atuar fica muito limitada. Também precisamos entender que são poucos os lugares no mundo em que os resultados e as respostas à pregação são tão expressivos quanto no Brasil.

É óbvio que devido aos conflitos no mundo moderno, dependendo de onde você vem e para onde você está indo, isso poderá ser um problema, e sério. Mas, em geral, se você estiver comprometido com Deus, com a igreja e com a salvação das pessoas, creio que não imposta muito de onde você seja.

Que conselhos você daria para alguém que sente no coração o desejo de trabalhar como missionário?

Ore muito. Tenha a certeza de que esse é o plano de Deus, não o seu. Tenha a certeza de ter sua família unida nesse projeto. E aprenda o inglês.

Em culto recente na Casa Publicadora Brasileira, você fez uma comparação entre um navio de guerra e um de cruzeiro. Poderia falar sobre isso?

Há pouco tempo li um livro de um jovem e brilhante pastor norte-americano chamado David Plat, intitulado Radical. Ele conta que na década de 40 os Estados Unidos construíram um navio de guerra chamado USS United States. Era para ser usado em missões de guerra e poderia carregar 15 mil soldados para qualquer lugar do planeta, em menos de dez dias. A missão desse navio de guerra era salvar aqueles que pereciam em função de guerras e conflitos. Era o maior e mais rápido navio de guerra construído ate então. O problema e que esse navio nunca viu uma batalha sequer. Ao contrario, foi transformado em um luxuoso navio de cruzeiro.

Agora, pense comigo: um navio de guerra é completamente diferente de um navio de cruzeiro. Em vez de carregar 15 mil soldados para a batalha, agora só podia carregar duas mil pessoas. Em um navio de guerra, o espaço não é importante, pois você tem uma missão em mente. Em um navio de cruzeiro, quanto mais espaço melhor. Em um navio de guerra, velocidade é um imperativo, pois pessoas estão morrendo; mas esse não e o caso no navio de cruzeiro: quanto mais lento melhor, pois o importante é desfrutar a vista e o cenário.

Em um navio de Guerra, ninguém se preocupa se a comida não é suficiente ou “do meu gosto”; pessoas precisam de mim, e minha missão é mais importante. Num navio de cruzeiro, tudo diz respeito a conforto, luxo e prazer.

Em outras palavras, em um navio de guerra, tudo diz respeito aos outros, a ir mais rápido, não importando as condições, pois temos uma missão, a de salvar o que perece. Não é o caso no navio de cruzeiro, onde tudo diz respeito ao meu conforto, ao meu prazer, pois a preocupação é toda centrada no “eu” e não no “próximo”.

Gosto muito de uma sentença em inglês que rima e diz o seguinte: “We should never evaluate a church by its seating capacity, but by its sending capacity.” Ou seja, nunca avalie uma igreja pela quantidade pessoas que entram para ouvir, mas sim pela quantidade de pessoas que saem para servir.

As igrejas, os pastores, os líderes e os membros, em sua grande maioria, correm o risco de esquecer qual é sua missão. Correm o risco de esquecer que existe uma grande guerra acontecendo e que precisamos ir o mais rápido possível para salvar o que perece. Se temos essa visão clara, os problemas pequenos que serão resolvidos facilmente e não daremos tanta importância a detalhes periféricos. Ha uma batalha cósmica em andamento. Jesus está prestes a voltar. O Céu é o lugar em que vamos desfrutar tudo, mas enquanto estamos na Terra, viajamos em um navio de guerra. Precisamos salvar o que perece.

Uma mensagem para os irmãos aqui no Brasil.

Ore para que Deus o ajude a fazer alguma coisa para a salvação das pessoas. Busque se envolver em algum ministério. Pare de prestar atenção e se preocupar com coisas pequenas, sem importância e que não levam a nada. Sonhe os sonhos de Deus. Invista em coisas que irão durar além desta vida. Não há maior alegria na vida de um cristão do que saber que está sendo usado por Deus para salvar pessoas. Tive grandes tristezas e sofrimentos ao longo destes quase dez anos servindo como missionário, mas encontrei um texto que me ajudou por muitos anos na Mongólia. Está em 1 Coríntios 15:58: “Portanto, meus amados irmãos, mantenham-se firmes, e que nada os abale. Sejam sempre dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil.”

Tudo, mas tudo mesmo que fazemos para o Senhor, de coração sincero, jamais será em vão. Posso dizer com segurança que já vejo os frutos do meu trabalho e quero continuar neste navio de batalha, indo o mais rápido possível a todos os lugares para preparar um povo especial para se encontrar com Deus.

quarta-feira, maio 28, 2014

Evolucionismo teísta é fuga do debate

Controvérsia persistente
Recentemente, concedi entrevista ao jornal Nosso Tempo, do Rio de Janeiro. Considerei as perguntas bastante interessantes e parte das minhas respostas (numa edição bem feita) foi publicada na edição de maio do jornal. Mas você, leitor do blog, pode ler aqui a íntegra das minhas respostas:

Michelson, evocando o eterno embate entre evolucionistas e criacionistas, acredita-se que o criacionismo apresenta uma perspectiva essencialmente religiosa, confrontando-se com o evolucionismo. No entanto, há ainda outra corrente, a do design inteligente, que parece “intermediária”. Em breves palavras, o que cada teoria preconiza? O design inteligente contradiz o que acredita o Criacionismo?  

Os criacionistas não negam que existe um viés teológico-filosófico em sua cosmovisão, mas os evolucionistas também não podem afirmar que seu modelo seja inteiramente científico, já que a filosofia por trás do pensamento evolucionista é o naturalismo filosófico, uma posição assumida a priori e não com base em dados científicos e experimentação, até porque a hipótese naturalista não pode ser submetida a qualquer teste. Assim, criacionistas e evolucionistas devem reconhecer que, embora se pautem pelo método científico, suas respectivas visões de mundo estão impregnadas de metafísica. Já o design inteligente é uma teoria que visa a detectar evidências de projeto, de propósito (teleologia) na natureza. Os teóricos do design inteligente, na verdade, estão mais próximos da ciência empírica do que criacionistas e evolucionistas. Eles não se preocupam com a natureza do Designer, pois sabem que isso transcende o método científico; não se valem de ciências históricas nem de hipóteses como a da macroevolução ou da abiogênese, nem tampouco utilizam livros religiosos. A teoria do design inteligente não contradiz em nenhum aspecto o criacionismo, já que os criacionistas também acreditam na teleologia e procuram igualmente evidências de design inteligente na criação. O que os criacionistas fazem é ir um passo além ao procurar determinar a identidade do Designer. Porque acreditam que a Bíblia Sagrada é a suprema revelação de Deus (e eles têm muitas razões lógicas, racionais e razoáveis para crer nisso), os criacionistas identificam o Designer como o Deus Yahweh das Escrituras.

Existe a possibilidade de essas teorias serem combinadas de alguma forma, com os seres vivos criados por Deus, por exemplo, terem passado por uma evolução (evolucionismo teísta, com a formação de fósseis intermediários)?

O criacionista bíblico que aceita na inspiração divina das Escrituras vê no evolucionismo teísta uma tremenda contradição, mistura de má teologia com má ciência. O evolucionismo teísta é apenas uma tentativa de fugir do debate. Conforme indico neste artigo (confira), criacionismo e macroevolucionismo são uma mistura impossível. Agora, em “assuntos periféricos” como a “microevolução” (ou diversificação de baixo nível), a seleção natural e as mutações, pode haver certa concordância, uma vez que esses são aspectos científicos com os quais os defensores dos três modelos concordam. O problema nunca reside nos fatos, mas na interpretação deles e nas extrapolações que se fazem a partir deles. Em qualquer discussão envolvendo a controvérsia entre criacionismo e evolucionismo, é preciso que inicialmente se defina a palavra evolução. Se se considera evolução, por exemplo, o desenvolvimento de resistência a antibióticos por parte das bactérias, criacionistas podem muito bem concordar com evolucionistas. Mas se se considera que um organismo unicelular poderia ao longo de milhões de anos se transformar num ser humano, aí o criacionista não pode concordar com o evolucionista, afinal, a macroevolução é uma extrapolação não baseada em dados nem em observações. Aliás, como demonstram as pesquisas com as moscas-das-frutas (confira), os mecanismos alegados para a evolução (como as mutações) não fazem o que se diz que fazem. Cem anos de pesquisas e muitas mutações induzidas provaram isso. Cem anos de “tortura” em laboratório, e as mosquinhas não “confessaram” a evolução.

Quais são as evidências “físicas” mais fortes que sustentam o Criacionismo?

Creio que sejam a origem da informação complexa e específica e a origem dos sistemas de complexidade irredutível. Por mais que se argumente em contrário, não há como explicar a partir do nada a origem da informação complexa da qual a vida depende para existir e funcionar. Somente no núcleo de uma ameba há informação equivalente à dos trinta volumes de uma enciclopédia como a Britânica. Num grama de DNA é possível armazenar 700 terabytes de informação.  Quando Darwin fez suas pesquisas e sistematizou sua teoria, os conhecimentos da biologia molecular e da bioquímica não estavam disponíveis. Ele sequer poderia saber o que há dentro de uma célula e o que são máquinas moleculares. Darwin não tinha noção de quão complexo ele era. Um dos muitos cientistas contemporâneos que se deram conta de que tamanha complexidade só poderia apontar para um Criador foi o ex-ateu Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, que se rendeu às evidências de design inteligente e escreveu o livro A Linguagem de Deus.

Cientistas famosos na História eram cristãos, como Isaac Newton. Como a fé desses homens deixou sua marca em suas pesquisas científicas, que são defendidas e respeitadas até hoje? Como podemos seguir esse exemplo em um país cada vez mais evangélico, mas onde as ideias têm sido defendidas com um fervor religioso muitas vezes proselitista e que recebe mais críticas do que admiração?   

Os precursores da ciência, também chamados “pais” da ciência, são realmente um bom exemplo de compatibilização entre fé e ciência. Eles não apenas seguiam o método científico como ajudaram a criá-lo. E provaram que foram justamente os pressupostos bíblicos que possibilitaram o desenvolvimento da ciência. Pressupostos como o de que a matéria é boa e não é divina, portanto, passível de ser estudada e utilizada para o nosso bem; de que o Universo funciona regido por leis estabelecidas pelo grande Legislador, portanto, um lugar em que os processos se repetem com certa ordem e regularidade; e assim por diante. É justamente na Europa cristã que a ciência moderna nasce. E isso definitivamente não foi por acaso. O exemplo dos pais da ciência deveria inspirar os cristãos da atualidade. Deveríamos ter sempre em mente que a ciência e a teologia são ótimas “ferramentas” para se entender a realidade que nos cerca. Abrir mão de uma delas é perder muito nesse processo. Às vezes, reclamamos de que certos cientistas falam bobagem quando o assunto é religião, mas não podemos fazer o mesmo quando falamos de ciência. Deus nos presenteou com um cérebro dotado de capacidades tremendas. O mínimo que podemos fazer para agradecer-Lhe é usar bem esse presente. Afinal, crer também é pensar.

Segundo um novo estudo da Universidade de Stanford (EUA), os antecedentes comuns do homem vieram da África e são chamados de “Eva mitocondrial” e “Adão cromossomial-Y”, e surgiram entre 99 mil e 156 mil anos atrás. No que esse estudo se aproxima do que diz a Bíblia sobre os primeiros habitantes do mundo?

A origem das primeiras populações humanas ainda é um tema discutido e controverso. Há pesquisas que apontam a Ásia (confira), o que estaria mais de acordo com o relato da dispersão a partir do Ararate, depois do dilúvio. Quanto às pesquisas em relação à “Eva mitocondrial”, o interessante é notar que os dados nos levam há alguns milhares de anos (confira aqui e aqui), o que estaria mais de acordo com a Bíblia. Isso também nos leva à constatação de que temos, sim, um ancestral comum, que, para o criacionista, se chama Eva.

Nessa perspectiva, o que dizer sobre a existência dos dinossauros? Ela se deu no mesmo período em que o homem já estava na Terra? A Bíblia fala algo sobre esses animais?

Em meu livro A História da Vida, dedico dois capítulos a esse tema instigante. E está em preparo para publicação pela CPB meu novo livro intitulado Terra de Gigantes, sobre os dinossauros e uma teoria a respeito da extinção deles. A verdade é que todas as cerca de 30 teorias a respeito dessa grande extinção não são conclusivas. Como explicar a fossilização de animais de grande porte, sendo que seria necessária grande quantidade de água e lama e um soterramento instantâneo para que isso acontecesse? Como explicar o fato de que são encontrados fósseis desses grandes répteis em praticamente todas as partes do mundo? Como explicar a constatação de que esses animais foram sepultados vivos e que a posição deles revela estado de agonia e sufocamento? A Bíblia não faz referência clara aos dinossauros, como também não faz a gatos e a girafas, por exemplo. Mas há quem creia que o beemote, mencionado no livro de Jó, possa ser um tipo de dinossauro. Os criacionistas creem que Deus criou os dinossauros e que muitos deles, assim como outros animais, passaram por processos de modificação e adaptação, o que levou ao surgimento de espécies violentas e carnívoras. E, sim, para os criacionistas, seres humanos e dinossauros foram contemporâneos, embora ainda não haja evidências materiais conclusivas a esse respeito (confira).

A ciência, de um modo geral, acredita que a Terra tem seus 4,5 bilhões de anos, teoria rechaçada pelos criacionistas, que acreditam em um número bem menor. Quais as evidências que provam que ela é realmente mais velha? E as que não provam? Como o Criacionismo contabiliza a “idade da Terra”?

Na verdade, há criacionistas que acreditam numa Terra “jovem”, com seis a dez mil anos de idade, e criacionistas que acreditam numa Terra bem mais antiga, talvez com os alegados 4,5 bilhões de anos. O que ambos os grupos concordam, via de regra, é com o tempo de existência da vida na Terra, que teria sido criada há alguns milhares de anos, numa semana literal com dias de 24 horas. Não fosse assim, a própria lei de Deus em Êxodo 20 não faria sentido, uma vez que o quarto mandamento se justifica pelo fato de que Deus criou todos os tipos básicos de vida aqui em seis dias, tendo reservado o sétimo para ser memorial dessa criação. Em Apocalipse 14:6 e 7, esse tema é retomado no contexto do fim, pouco antes da volta de Jesus. Quanto às evidências a favor e contra a idade antiga da Terra, teríamos que discutir sobre os métodos de datação e suas insuficiências, mas o espaço aqui não permite isso.

Recentemente, o Ministério da Educação brasileiro declarou que o Criacionismo não deve ser ensinado em aulas de ciência, restringindo-se às aulas de religião. O problema não parece ser o ensino em si, mas a adequação do conteúdo à disciplina mais apropriada. Por que o Evolucionismo, apesar de ser uma teoria, é ensinado como comprovadamente factual? Qual seria a melhor solução de abordagem, em sua opinião?

As ideias de Einstein também são teorias, e são estudadas nas aulas de física. Teoria, na verdade, é um sistema consistente formado por observações, ideias e axiomas ou postulados, constituindo no seu todo um conjunto que tenta explicar determinados fenômenos. Isso, por si só, não seria motivo para que não se ensinasse o evolucionismo em aulas de ciência. O problema é o ensino acrítico dessa teoria, como se ela não contivesse inconsistências e insuficiências, e fosse um “edifício bem acabado”, sem defeitos. Ensina-se macroevolução como se fosse fato e não se distinguem os aspectos filosóficos do modelo. Os criacionistas que eu conheço, incluindo aí os associados da Sociedade Criacionista Brasileira, nem concordam que se ensine criacionismo nas aulas de ciências, basicamente, por dois motivos: (1) criacionismo é um modelo científico-religioso e (2) praticamente não existem professores capacitados para ensinar devidamente o criacionismo. Num contexto assim, é melhor mesmo nem abordá-lo em sala de aula. Se se pudesse ensinar um evolucionismo crítico, não ufanista, já se faria uma grande coisa.

Como jornalista, de que forma o senhor vê o tratamento da mídia, sobretudo a brasileira, em relação a questões que retratam e explicam a origem da vida?

Muito limitado e preconceituoso. E tenho acompanhado essa cobertura já há 20 anos, desde que me tornei criacionista. Nesta palestra (confira), apresento meu ponto de vista sobre o assunto e os resultados dos meus estudos.

Um professor de filosofia da Universidade Britânica de Oxford afirmou, em um vídeo que tem sido divulgado na internet, que “Deus não está morto” na Academia, em contradição à famosa afirmação do filósofo alemão Friedrich Nietzsche no século XIX. A sociedade, hoje, está menos ateísta e mais religiosa? Por outro lado, essa visão religiosa se aproxima do que a Bíblia preconiza ou se afasta?

Sim, a sociedade está mais religiosa (apesar de que também cresce o número dos que se consideram sem religião). Mas que religiosidade é essa? É um tipo de religião pós-moderna e relativista, focada nos sentimentos, na experiência, e menos na Revelação. Pouco se estuda a Bíblia e menos ainda se crê em seus ensinamentos e suas doutrinas. É nesse cenário que o espaço está aberto para o evolucionismo teísta e modalidades esdrúxulas de cristianismo. Precisamos voltar à Palavra de Deus e aos pilares fundamentais da filosofia judaico-cristã. E isso não significa ser fundamentalista. Significa ser coerente com a revelação especial de Deus por meio da Bíblia Sagrada e também com a ciência experimental. No meu entender, isso é o que significa ser criacionista.

quinta-feira, maio 08, 2014

Em nome do criacionismo

Pegada de T-Rex (Boston Museum)
Escritor, jornalista e mestre em teologia. Esses são atributos de um dos mais conhecidos nomes do criacionismo no Brasil. Michelson Borges, natural de Criciúma, Santa Catarina, formou-se em jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e fez mestrado em Teologia pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), campus de Engenheiro Coelho. É autor de livros como A História da Vida e Por Que Creio, ambos lançado pela Casa Publicadora Brasileira (CPB), onde trabalha atualmente. Há cerca de oito anos procurou uma forma simples de abordar um tema complexo ao criar um blog voltado para o criacionismo. “O criacionista procura enxergar a realidade com as lentes da teologia e da ciência. É possível ver mais longe desse jeito.” Abaixo, trechos da entrevista cedida à ABJ-Notícias.

O que levou você a mudar de sua antiga filosofia darwinista ao criacionismo? E o que o criacionismo representa hoje para você? 

Abandonei a ideia da macroevolução e o naturalismo filosófico quando estudava no curso técnico de química. Sempre fui amante da ciência e, por isso, naturalmente cético. Quando soube que o darwinismo tinha graves insuficiências epistêmicas, passei a estudar o assunto mais a fundo. Deparei-me com o argumento da complexidade irredutível, de Michael Behe, e com a tremenda dificuldade que o darwinismo tem em explicar a origem da informação complexa e específica. De onde surgiu a informação genética necessária para fazer funcionar a primeira célula? De onde proveio o acréscimo de informação necessária para dar origem a novos planos corporais e às melhorias biológicas? O passo seguinte foi buscar um modelo que me fornecesse respostas ao enigma do código sem o codificador, do design sem o designer, da informação sem a fonte de informações. Fiquei aturdido com a complexidade física do Universo e com a complexidade integrada da vida. Nessas pesquisas, descobri que o criacionismo é a cosmovisão que associa coerentemente conhecimento científico e conhecimento bíblico. E me descobri em boa companhia ao saber que grandes cientistas como Galileu, Copérnico, Newton, Pascal, Pasteur e outros não viam contradição significativa entre a ciência experimental e a teologia judaico-cristã. Usei meu ceticismo, fui atrás das evidências – levassem aonde levassem – e me surpreendi com uma interpretação simples e não anticientífica para as origens. Resultado? Tornei-me criacionista.

Há quanto tempo e de que forma surgiu a ideia de criar o blog criacionismo?

Há cerca de oito anos, quando percebi que poderia contribuir com a causa criacionista popularizando o assunto e “traduzindo” conteúdos que geralmente são tratados de maneira muito acadêmica.

Você escreveu livros como Por Que Creio e História da Vida, ambos voltados para sua atual filosofia. O que o levou a escrevê-los? Seria uma forma de responder a outras perguntas que você tinha quando darwinista?

No caso do A História da Vida, procurei reunir os argumentos que me fizeram abandonar o darwinismo e, assim como faço no blog, abordá-los numa linguagem compreensível. Por isso mesmo, considero esse livro uma boa introdução à controvérsia entre a criação e a evolução. O Por Que Creio nasceu de um desafio, se posso dizer assim. Em 2002, uma revista popular de divulgação científica no Brasil teve a “coragem” de afirmar que os criacionistas seriam “especialistas autoproclamados”. Isso me deixou indignado e corri atrás de 12 pesquisadores criacionistas de várias áreas e com boa formação acadêmica, entrevistei cada um deles, reuni o material em forma de livro e provei que a tal revista estava errada. Enviei exemplares aos editores, mas nunca obtive qualquer resposta. Não que eu esperasse isso...

Algumas pessoas acreditam na inviabilidade de conciliar ciência e religião. Isso seria um mito? Qual a sua visão em relação a esse pensamento?

Os criadores do método científico, homens do quilate de Isaac Newton, Galileu Galilei e Copérnico, eram profundamente religiosos, criam na Bíblia e nos legaram um tremendo patrimônio científico. Atualmente, também há cientistas que conciliam essas duas facetas do conhecimento e se valem dessas duas “ferramentas” para compreender a realidade. Dispensar a teologia ou a ciência é abrir mão de lentes poderosas para compreender o mundo que nos cerca. A verdade é muito ampla e nossos esforços para conhecê-la também devem ser amplos.

Como mestre em teologia, de que forma você percebe a teologia interagindo com o criacionismo?

A teologia bíblica é a base filosófica do criacionismo, assim como o naturalismo é a do evolucionismo. E ambas são adotadas a priori, não derivam da pesquisa científica. Na verdade, elas até orientam as pesquisas.

Para você por que as pessoas deveriam acreditar no criacionismo?

As pessoas deveriam pelo menos considerar os argumentos criacionistas, sem se deixar levar pelo preconceito. Considero no mínimo injusto descartar uma ideia sem antes conhecê-la. O verdadeiro conhecimento nasce da análise do contraditório, da ponderação. Por isso, seria muito útil, realmente, avaliar os argumentos criacionistas e evolucionistas, sempre à luz da ciência experimental, do método científico.

(Leonardo Lacerda; ABJ Notícias)