quinta-feira, novembro 27, 2008

Aventura sobre duas rodas

Manoel de Carvalho tem 46 anos, é ex-professor e há 17 anos atua como técnico gráfico na Editora do Colégio Objetivo. Casado com a Nora e pai da Carol e do Artur, é membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia de São Miguel Paulista, onde foi ancião e tesoureiro, entre outros cargos. Além disso, é líder de jovens e de desbravadores. Nesta entrevista, ele conta um pouco de suas aventuras motociclísticas que renderam a publicação de um livro intitulado A América do Sul Sobre Duas Rodas.

Em suas palestras você costuma dizer que é importante ter um sonho.

Certamente, uma das coisas mais importantes da vida é ter um sonho. Você e eu não devemos viver sem ter sonhos. Ou a gente vive o sonho ou vive um dia após o outro sem sair da zona de conforto. Acredito que o que você faz normalmente é resultado do que você na verdade crê.

E qual é o seu sonho para curto prazo?

Entrar para o Guinness Book [Livro dos Recordes], ao fazer a travessia pan-americana do Alasca à Patagônia, numa moto 125cc. Como se trata de uma aventura muito cara, resolvi fazer algumas aventuras pela América do Sul. Foram três viagens que perfizeram 51.000 km. Cada viagem foi feita em um período de férias. Assim, ganhei alguma experiência, o que, ao meu ver, facilitaria o aparecimento de um patrocinador. Na verdade, descobri que conseguir um patrocínio no Brasil é como ganhar na loteria. Mesmo depois de dar entrevistas nas rádios mais ouvidas de São Paulo, de ser entrevistado por revistas especializadas em motociclismo, pelo Jornal da Tarde e outros jornais regionais, o patrocínio ainda não chegou.

Fale sobre as dificuldades enfrentadas em suas viagens.

Foram muitas. Por isso costumo dizer que para se aventurar como fiz é preciso um preparo especial antes de cair na estrada. Estar preparado física e psicologicamente é primordial, sem contar o dinheiro no bolso, coisa que eu menos tinha. Justo pela falta de dinheiro, enfrentei muitas privações. A primeira dificuldade foi o frio na região de Entre Rios, Argentina, quando a temperatura chegou a 2 graus. Frio, né? Mas acrescente a isso a velocidade da moto, o vento e a garoa que caía no início daquela noite. Esse conjunto gerou uma sensação térmica de 14 graus negativos. No terceiro dia na Argentina, surgiu um problema sério: na cidade de Rio Cuarto, numa parada para trocar a corrente e o pneu traseiro, o meu cartão de crédito não funcionou. O dono da loja fez de tudo, mas não teve jeito: o pagamento foi feito em dólar. Saí de casa com 380 dólares e o cartão de crédito. Para complicar ainda mais, perdi todos os meus pesos argentinos. Mais uma vez usei dólares. No fim desse terceiro dia na Argentina, às 23h, ao chegar na pequena Uspallata, no meio da Cordilheira dos Andes, percebi que perdera pouco mais de 30 dólares. Que dia!

Depois de ir dormir quase uma hora da manhã, acordei às 7h30. Afinal de contas, a neve estava ali do lado. Agora era só andar pouco mais de uma hora e já estaria em terras chilenas. Demorei mais de três horas, pois a beleza dos picos nevados me fez parar várias vezes, sem contar a velocidade da moto que cai bastante devido à altitude. Antes de entrar no Túnel Cristo Redentor, que separa Chile e Argentina, tive que conversar bastante com um policial argentino que alegou que faltava um documento da moto.

A decida da cordilheira é uma coisa incrível: são 42 curvas simétricas. Às 16h daquela sexta-feira, cheguei a Santiago. Procurei a igreja adventista central de Santiago. Passei a noite na casa do pastor brasileiro Josias Machado. Ele passara a semana fora e seu bebê estava adoentado. Escola Sabatina e culto foram feitos na casa do pastor. O pastor Josias disse para eu não me preocupar porque o cartão iria funcionar. Assim que pudemos, fomos ao “cacheiro” (caixa eletrônico). E não é que o cartão funcionou! O pastor fez a operação e sacou quase 400 dólares. E me disse: “Agora você pode continuar sua viagem.”

Ficou combinado que eu passaria a noite na Escola Adventista de La Serena, uma bela cidade à beira-mar. Antes, passei em Viña del Mar e isso me atrasou. Ao anoitecer, La Serena ainda estava a mais de 100 km. Acabei entrando no deserto à noite. No Atacama, ninguém anda de moto à noite. Passei mais frio do que na Argentina. Quase morri de hipotermia.

Em Antofagasta, almocei na casa da família do pastor Osmar Scherch. Eles também são brasileiros. Foi bom comer uma comidinha caseira. Perto de Arica, na Costa Cinza, a gasolina entrou na reserva, em pleno deserto.

Você também quase sofreu um acidente nessa viagem. Como foi?

Pilotar uma moto em média 15 horas por dia não é brincadeira. Assim, faço alguns exercícios sobre a moto para aliviar as dores. Uso uma almofada presa ao banco para não ferir as nádegas. Naquele trecho, ao deitar-me sobre a moto, a almofada soltou-se e caiu do lado esquerdo entre a corrente e a roda, quebrando a corrente. Foi um tranco violento. A máquina fotográfica que estava sob minha jaqueta foi parar longe. Ao mesmo tempo em que comecei a arrumar a moto, um motorista parou e ofereceu ajuda. Uma hora depois, cheguei em Arica. Aquele homem foi como um anjo enviado por Deus.

Os problemas não acabaram ali, não é mesmo?

Não. Depois de La Joya, no Deserto de Shilca, Peru, estava a última saída para voltar ao Brasil via Arequipa, Puno e depois Bolívia. Pensei em voltar, pois achei que o dinheiro não daria para chegar à Venezuela. Na verdade, só pensei. Segui para Lima. Nessa hora, fiquei sem meus óculos. O parafuso da armação se soltou e as lentes caíram. Como pilotar sem óculos, visto que tenho só 50% da visão. Pedi para que Deus suprisse a falta dos meus óculos.

Ao entrar na pequena Guadalupe, norte do Peru, pisei no freio e ele não respondeu. Parei a moto e vi que o pino da roda traseira estava solto. A porca havia caído. Foi por um triz. O meu anjo segurou aquele pino e a estrada boa ajudou também (a moto vibra menos). Imagine se o pino tivesse saído? Teria acabado tudo ali mesmo, depois de ter rodado mais de 9.000 km. Arrumar uma porca em Guadalupe não foi fácil.

Subindo a Cordilheira Central, pouco antes de Bogotá, fui ultrapassar uma carreta bitrem. Nisso, desceu um caminhão na contramão. A moto não passava dos 30 km/h por causa da grande altitude. Vi que ele ia bater de frente. Num segundo, pensei: “Ai, meu Deus, agora que rodei 11.000 km, vou morrer aqui tão longe de casa. Não me deixe morrer aqui, por favor!” Foi quando o motorista do caminhão freou e o veículo derrapou na pista. Consegui passar entre a lateral do caminhão e a cabine da carreta. Mais uma vez meu anjo me ajudou.

Perto de El Tigre, Venezuela, a moto apresentou desgaste na corrente. Eu tinha pela frente a Serra do Lema. Como subir os 32 quilômetros dessa serra com a corrente ruim? Seria impossível. Eu precisava subir antes de escurecer. Cheguei ao pé da serra junto com o pôr-do-sol. Entrei na serra. Subi 6 km e a corrente soltou. Arrumei, andei uns 5 metros, soltou pela segunda vez. Parei, arrumei, andei mais 2 km e ela soltou pela terceira vez, e desta vez soltou no pinhão e coroa. Eu já estava todo sujo de graxa. Coloquei a corrente no lugar, andei mais 1,5 km e soltou pela quarta vez. Atente para uma coisa: quando se esgotam nossos recursos, temos apenas um, nosso Deus. Ajoelhei-me ao lado da moto, no meio daquela floresta, e disse ao meu Deus: “Senhor Deus, não há ninguém aqui além de mim. Apenas eu, a moto, a escuridão da noite e o Senhor. Ttira-me daqui, em nome de Jesus. Amém.” Subi na moto e ela andou mais 530 km sem dar sinal de desgaste na corrente. Deus atendeu minha “discagem direta a Deus (DDD)”.

E no Brasil, como foi a aventura?

Depois de chegar a Manaus, peguei um barco para Santarém. De lá, encarei a Cuiabá-Santarém. Foram 890 km de todo tipo de terreno. Perto de Rurópolis, há um trecho de asfalto, onde entrei às 19h. Quando menos esperava, a estrada acabou. Estava muito escuro! Quando me dei conta, a moto já estava suspensa no ar. Voei 5,5 m e cai num lugar meio fofo. Lá estava eu na beira de um igarapé. Nesse segundo em que a moto voou, passou um “filme” de toda minha vida. Achei que tudo ia acabar ali mesmo. Entretanto, mais uma vez, meu anjo me segurou pela mão, ou melhor, pelo guidão da moto. Agradeci mais uma vez a proteção divina.

Agora, ao fazer a Expedição os Quatro Extremos do Brasil, eu sabia que ia ser mais difícil do que o Contorno da América do Sul, pois as estradas são terríveis na região Norte – isso quando existe alguma estrada.

Minha primeira grande dificuldade foi uma chuva torrencial antes de chegar a Rio Branco, capital do Acre. Foram momentos tenebrosos, sem ter um lugar para me abrigar naquela noite. No outro dia, enfrentei uma estrada enlameada que mais parecia sabão. Pensei que não conseguiria chegar a Feijó. As estradas nessa região ficam fechadas na época da chuva. Foi um verdadeiro rali.

Ao andar de Porto Velho a Manaus, fui obrigado a encarar a BR 319, estrada abandonada há muitos anos. Foram mais de 500 km sem gasolina, sem telefone, sem civilização. Imagine se a moto quebra num lugar desse ou se acontece um acidente? Depois, fiquei dois dias com os índios na Reserva Raposa Serra do Sol, onde está o Monte Caburaí, o ponto mais ao norte do Brasil.

Ao partir para o terceiro extremo, Ponta do Seixas, resolvi ir pelo Sertão do Cariri. Desisti de um compromisso com o pastor Wiliam (“Chumbinho”) em Fortaleza. Foi a pior viagem, pois em Patos, na Paraíba, tive todos os documentos e dinheiro roubados. Imagine você a 3.000 km de casa, sem nada no bolso. Não dá para contar todos os detalhes, mas foi um dia traumático.

Mas a situação piorou, né?

E como! No dia seguinte, apareceram os primeiros sintomas da malária. Quase morri. Levei quatro dias e meio para chegar a São Paulo. Perto de Vitória da Conquista, ao perceber que a morte me rondava, resolvi pegar carona com um caminhão. Foram quatro dias e meio até chegar à minha casa. Só não morri porque Deus não permitiu e porque eu carregava na bagagem vários remédios. A malária faz a febre chegar aos 42 graus, o que pode causar convulsão e levar o paciente à morte.

E o aspecto missionário da viagem?

Levei muitos daquele livreto Ele é a Saída, da Casa Publicadora Brasileira. Onde eu passava, deixava um exemplar. Nos outros países, deixei um panfleto que peguei na igreja adventista central de Santiago. Até hoje mantenho contato com pessoas de outros países e do Brasil, e, sempre que posso, mando algum material evangelístico para eles.

A vida pode ser uma aventura, em todos os aspectos.

(Para adquirir o livro A América do Sul Sobre Duas Rodas ligue para [11] 3289-7522, 7102-2141 ou envie um e-mail para nora.manoel@terra.com.br)