quarta-feira, janeiro 10, 2007

No tempo dos pioneiros

Um dos últimos netos vivos do primeiro converso ao adventismo no Brasil partilha suas memórias

Evaldo Belz nasceu no dia 12 de maio de 1914, em Gaspar Alto, SC. Neto do pioneiro do adventismo no Brasil – Guilherme Belz –, aos 18 anos mudou-se para São Paulo, a fim de estudar no antigo Colégio Adventista Brasileiro (CAB, hoje Unasp). Casado com Lydia Ady van Roo Belz (que mora há noventa anos próximo ao campus do Unasp), teve quatro filhos.

Em sua casa, no bairro Capão Redondo, em São Paulo, concedeu esta entrevista a Michelson Borges:

Como foi sua infância e juventude em Gaspar Alto, SC?

Tínhamos uma escola simples lá, fundada em 1897. Foi a primeira escola paroquial adventista do Brasil e funciona até hoje. Havia pouco dinheiro e dificuldade para se conseguir professores. Meu pai, Reinhold Belz, como inspetor de quarteirão e encarregado da prefeitura para abrir estradas, usou de sua influência, buscou donativos e incentivou as famílias da região a colocar as crianças na escola. Lembro-me até hoje da minha professora, Catharina Schirmer, e de alguns colegas.

Também não me esqueço de uma situação meio constrangedora. Um dia, meu pai me mandou arar a terra com a junta de bois, antes de ir para a escola. Trabalhei algumas horas e não queria mais ir para a escola, porque já era tarde. Ele me disse que fosse assim mesmo. Levei os bois até um pasto que havia próximo à escola e meus colegas me viram chorando. Quando cheguei à sala de aulas, eles caçoaram de mim. A despeito da vergonha, esse fato demonstra que havia duas coisas importantes naqueles idos: necessidade de trabalho e educação, que era muito valorizada pelos pioneiros adventistas.

Fale sobre seu pai.

Eu tinha muito respeito por ele. Era um homem de fé, influenciado pelo meu avô, Guilherme, o primeiro converso ao adventismo no Brasil, em 1890. Meu pai reunia a família (esposa e oito filhos) todas as manhãs para fazer o culto. Sexta-feira e sábado ao pôr-do-sol cantávamos “Desce o sol atrás dos montes”. Pena que ele morreu tão cedo.

Numa manhã de domingo, 8 de maio de 1927, meu pai se dirigia para a mata, com meu irmão Reinhold Filho, de 22 anos, e comigo, que tinha 13 anos, na época. Íamos cortar árvores para levar para a serraria de Fritz Peggau. Fritz era cunhado do meu pai e alugava sua serraria por uma porcentagem das toras cortadas. As tábuas eram vendidas em Brusque, e esse negócio constituía um complemento às atividades da roça e da criação de gado.

Às 8 horas da manhã, meu pai e meu irmão conduziam o carro de boi, quando em certa curva da picada, no meio da mata, três jovens os abordaram. Atrás do carro, só consegui ouvir as vozes exaltadas, mas não compreendi o teor da conversa. De repente, ouvi um tiro e vi os três estranhos fugindo. Corri para o local do incidente e vi meu pai e meu irmão caídos numa vala. Papai estava morto.

Ajudei meu irmão a sair do buraco e ambos corremos para casa, em busca de ajuda. O corpo do papai ficou lá até a tarde, à espera do delegado.

Além de ancião, meu pai era inspetor de quarteirão (função que, na época, equivalia à de sub-delegado). Como era cristão, responsável pela ordem local e parente de Fritz Peggau, ele se viu na obrigação de advertir o cunhado de que vira as três filhas dele saindo às escondidas e em atitudes indecorosas com uns jovens recentemente chegados da Alemanhã. Fritz (que na época havia abandonado a fé adventista) castigou as filhas, e elas contaram tudo aos namorados. Estava aí o motivo para a eliminação do delator.

Meu irmão mais velho, Edmond, de 31 anos, ficou revoltado e queria se vingar dos assassinos. Mas Reinhold disse: “Deus existe e Ele vai fazer justiça. Não precisamos fazê-la por nossas próprias mãos.” Ironicamente, pouco tempo depois, já libertos da prisão, os três assassinos acabaram morrendo (um deles picado por cobra).

O que o senhor lembra dos cultos e dos primeiros pastores?

Freqüentei o primeiro templo de madeira da Igreja de Gaspar Alto, que foi inaugurado em 23 de março de 1896. Havia unidades separadas, uma das quais se reunia na escola, também de madeira, ao lado do templo. Meu pai foi ancião por vários anos, até que foi assassinado.

Os pastores iam pouco lá. Eu me lembro dos Pastores Streithorst e Kaltenheuser. Eles subiam a cavalo de Brusque até Gaspar Alto. Geralmente chegavam na sexta-feira e ficavam até domingo ou segunda. Nessas ocasiões, vinha gente de Benedito Novo e arredores de Gaspar Alto. Esses irmãos ficavam hospedados em nossas casas. Era uma verdadeira festa espiritual.

Em nossa casa havia um quarto especial para os pastores, no segundo andar. Essa casa ainda existe lá em Gaspar Alto, mas está em ruínas. Foi uma casa comprada da escola por meu pai e reformada por ele. Quando o pastor ia em casa, era uma ocasião especial. Éramos pobres, mas minha mãe fazia uma refeição especial. Tínhamos respeito pelo servo de Deus.

Fui batizado aos 14 anos, após o falecimento de meu pai, no pequeno rio que fica próximo à igreja. Em dia de batismo, era colocada uma tábua para represar o rio. Foi um dia muito feliz. E a Santa Ceia, então? Era realizada com um único copo. Assim que uma pessoa bebia, o diácono limpava o copo com um pano. Numa época, havia um irmão com uma doença na boca. Ele era deixado para beber por último, mas ninguém ficava fora.

Por que o senhor veio para São Paulo?

Eu tinha 18 anos na época e vim para São Paulo para estudar o colegial no CAB, hoje Unasp. Mas estudei poucos meses e fui trabalhar na indústria adventista de alimentos naturais Superbom, a partir de 1932, quando ainda se chamava Excelsior. Comecei trabalhando na lavoura do colégio, a fim de pagar os estudos. Vim a convite do meu primo, o Pastor Rodolpho Belz, que era professor no colégio.

Para vir a São Paulo, aproveitei a companhia de dois anciãos que vieram como delegados para uma reunião quadrienal no CAB. Viemos de navio de Itajaí até Santos. Pegamos trem até a Estação da Luz; bonde até Santo Amaro e carro até o colégio. A viagem levava 24 horas. Vomitei muito no navio, nessa minha primeira viagem. Depois fui para a casa do meu tio missionário, Francisco Belz. Morei com ele uns dois ou três meses, em Mogi das Cruzes. Ele já estava aposentado, com cerca de 70 anos, mas era incansável. Pregava na região de Jundiaí. Trabalhei com ele no sítio dele, enquanto aguardava o momento de ir para o colégio.

Francisco nasceu em 1868, na Alemanha, por isso foi perseguido na I Guerra Mundial, aqui no Brasil. Ele pregou o evangelho em muitos lugares das regiões Sul e Sudeste. Foi um dos primeiros alunos da Escola Superior de Gaspar Alto a ser enviado para o campo missionário. Ficava meses sem ver a família e enfrentou muitas lutas numa época em que os meios de transporte eram muito precários.

Para mim, ele era um adventista de verdade. Fazia o culto pela manhã e à noite comigo e com a esposa, Gerthrud, todos os dias. E não perdia a chance de pregar o evangelho.

Como o senhor conheceu sua esposa?

Minha esposa e eu nascemos com dois anos e pouco de diferença e a poucos metros um do outro (nossas famílias eram vizinhas em Gaspar Alto). Mas com 14 meses ela veio para São Paulo com os pais, que se estabeleceram a 200 metros do antigo portão do colégio. Ela cresceu e estudou no CAB e nunca se mudou daqui nesses 90 anos. Cresceu junto com a instituição.

A família dela, os van Roo, imigrantes holandeses, mudaram-se para Gaspar Alto em 1901, por causa da Escola Superior. Quando o colégio foi transferido para Taquari, em 1903, e de lá para São Paulo, em 1915, os van Roo venderam tudo o que tinham em Santa Catarina e se mudaram para cá, em junho de 1916.

Meus pais sempre me falaram muito dos van Roo e, quando vim morar no colégio, sabia que eles também residiam aqui perto. Numa sexta-feira à noite, desci da sala de culto por algum motivo e passei pela Lydia. Não sei se conversei com ela, mas ela me chamou a atenção. Minha irmã estava estudando no colégio e sabia onde os van Roo moravam. Um dia, quando disseram que iam visitá-los, dei um jeito de ir junto. Acabei conhecendo melhor a Lydia. Eu tinha 17 anos e ela 16. Namoramos e nos casamos.

O que o senhor fazia na Superbom?

Comecei lá quando a Superbom ainda fazia parte do colégio. Trabalhava na lavoura, já que tinha experiência com o arado. Depois fui chefe da horta e, finalmente, chefe de produção, função que exerci por 46 anos, de 1932 a 1978.

Compare a igreja do seu tempo de jovem com a de hoje.

A igreja mudou muito. Naquele tempo as normas eram mais rigorosas, como no que diz respeito ao vestuário e aos adornos. Além disso, a igreja me parece morna. Antes havia mais comprometimento com a causa, mais fervor. Era uma época difícil, mas os membros trabalhavam mais. Estamos no tempo do “rico estou e de nada tenho falta”, comparado àquele tempo.

O que o senhor espera do futuro?

Oro todos os dias para estar preparado. Meu “prazo de validade” já venceu e sei que estou aqui por poucos dias. Peço que Deus envie o Espírito Santo sobre mim para que eu esteja pronto. Quero morrer preparado.

Daqui a pouco tempo vocês completarão 70 anos de casados. Qual o segredo para um casamento tão duradouro?

Primeiramente, é preciso compromisso com Deus e um com o outro; o desejo de enfrentar tudo e ficar juntos até o fim. Antes de começar o namoro, a Lydia e eu oramos para que Deus nos mostrasse se isso era da vontade dEle. Se não fosse, pedimos que Ele mudasse o que sentíamos um pelo outro, para que não sofrêssemos. Só quando tivemos certeza é que prosseguimos em nosso relacionamento.

Uma mensagem para os leitores.

A melhor coisa que podemos fazer nesta vida é nos apegarmos a Cristro e não às coisas deste mundo, que não levaremos para a vida eterna. A volta de Jesus deve ser nossa única esperança. Não existe coisa melhor do que estar com Cristo. Espero Jesus há nove décadas e nunca desanimei, graças a Deus. Vale a pena esperar! Pelo que vejo acontecendo no mundo, creio que a realização desse sonho está muito próxima; mais do que nunca.

Desde pequeno, antes ainda de meu batismo, sempre devolvi meu dízimo e nesses anos todos nunca me faltou nada. As palavras do Salmo 37:25 se cumpriram em minha vida: “Fui moço e, já, agora, sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a sua descendência a mendigar o pão.”

Fidelidade, oração e estudo da Bíblia – nisso consiste o segredo para permanecermos firmes. Temos que crescer dia a dia em santidade.